Para André Bazin “a fotografia apresenta-se assim como o acontecimento mais importante da história das Artes Plásticas” (Ontologia da Imagem Fotográfica), sendo que o cinema é herdeiro da fotografia, uma imagem bidimensional que nos oferece a ilusão da tridimensionalidade através da profundidade de campo, criando a ilusão do movimento pela perpectiva artificial. Ora é neste jogo de convenções que o director de fotografia tem no cinema um papel fundamental e único, dominando a objectiva e a luz, como escreveu Bazin, transporta-nos para “uma representação total e integral da realidade, considerando desde logo a restituição de uma perfeita ilusão do mundo exterior com o som, a cor e o relevo”.
Ora, no passado dia 19 de Agosto deixou-nos um dos grandes fotógrafos do cinema mundial, o português Eduardo Serra, nomeado para dois Óscar, vencedor de um BAFTA, para além de outros prémios internacionais e de um Sophia honorário atribuído pela Academia Portuguesa de Cinema.
Porém, apesar deste reconhecimento além fronteiras para o português, seria injusto não enaltecer inúmeros directores de fotografia que se destacam no cinema português de valor inquestionável e que atravessam as filmografias dos maiores realizadores portugueses. Uma lista distinta que não cabe no espaço destas linhas. Mas, sem qualquer hierarquia, podemos lembrar Acácio de Almeida que começou como assistente, entre outros de Celso Roque e Augusto Cabrita, para se estrear na direcção em 1967 em 7 Balas Para Selma, de António e Macedo, ficando ligado ao grande êxito que foi O Cerco (António Cunha Telles,1970), filmando depois com Manoel de Oliveira, em O Passado e o Presente (1972) a que se juntam outros nomes, de João Botelho a Alberto Seixas Santos ou de António Reis e Margarida Cordeiro, passando por Solveig Nordlund, João César Monteiro e Rita Azevedo Gomes. Ou seja, está com a esmagadora maioria dos realizadores portugueses até hoje, em 2024 fez Mãos no fogo, de Margarida Gil, mas também muitos realizadores estrangeiros o procuraram como Alain Tanner em Na Cidade Branca (1983) ou Valeria Sarmiento, Le Cahier Noir (2018), numa filmografia de mais de uma larga centena de filmes.
Claro que Elso Roque é outro nome incontornável, com o qual Acácio de Almeida colaborou e que fotografou também para nomes como Paulo Rocha, em Mudar de Vida (1966), outro filme do Cinema Novo português de que o realizador é percursor, Manoel de Oliveira, Benilde ou a Virgem Mãe (1975), vários de António de Macedo, bem co Manhã Submersa (1980), incursão de Lauro António na realização, entre outros, alguns também estrangeiros.
Mas, para além destes, chamemos-lhe assim, veteranos, novos nomes estão a dar cartas como Rui Poças, Mário Castanheira, João Ribeiro, Mário Barroso e Leonor Teles que par da realização, vencedora do Leão de Ouro de Berlim para a Melhor Curta Metragem com Balada de um Batráquio (2016), é também a directora de fotografia, tendo ultimamente uma profícua colaboração com João Canijo, com destaque para o díptico Mal Viver vencedor do Urso de Prata em Berlim e Viver Mal (2023).
Mas voltando a Eduardo Serra, a quem a Cinemateca Portuguesa dedicou o ciclo “Interpretar Um Texto Com Luz”, no passado mês de Julho, na qual foram exibidos três filmes em que "deixou de lado a direção de fotografia para se sentar na cadeira de realizador": Un Anniversaire (1975), sobre o primeiro aniversário da Revolução de Abril, "Rink-Hockey - Le Hockey sur Roulettes" (1982) e "Cinéma portugais - Un Mode d'Emploi" (1990). Aí passaram as suas colaborações com realizadores, quer da Europa quer dos Estados Unidos da América, como seria de esperar, o nomeado para os Oscar, Rapariga com Brinco de Pérola (2003), de Peter Webber, O Protegido (2000), de M. Night Shyamalan, O Marido da Cabeleireira (1990, de Patrice Leconte, nomeado para o Cesar da Academia Francesa e, entre outros, Sem Sombra de Pecado (1982), de José Fonseca e Costa, filme que lhe abriu as portas para a sensacional carreira que conquistou e que sempre lembrou a aposta de Fonseca e Costa numa altura em que era assistente e aquele o convidou para assegurar a direcção da fotografia. Foi a primeira de um extenso rol. Pelo meio outra nomeação para a estatueta de Hollywood com As Asas do Amor (1997), de Iain Softley, Jude (1996), de Michael Winterbottom, Para Além do Horizonte (1998), realizado por Vincent Ward, “um dos trabalhos mais complexos de Eduardo Serra, bobby darin – o amor é eterno (2004), de Kevin Spacey, actor, argumentista e realizador, um retrato do crooner Bobby Darin eternizado pela sua versão de Beyond the Sea, que dá título ao filme, Bellamy (2009), de Claude Chabrol ou os portugueses A Mulher do Próximo, nova colaboração com José Fonseca O Processo do Rei (1989), de João Mário Grilo que segundo o realizador “ é um filme muito pictórico, onde o contributo do Eduardo Serra foi essencial”, Amor e Dedinhos de Pé (1991), de Luís Filipe Rocha e O Delfim (2002), de Fernando Lopes ou, novamente a nível internacional Diamante de Sangue (2006), de Edward Zwick, um daqueles filmes com orçamento de milhões e em que Eduardo Serra surpreende ao “estragar” a imagem de forma a dar a sensação de que é filmado por um repórter em campo de batalha. Uma nova aposta ganha que o catapultou para a fotografia da saga Harry Potter, adaptações da obra J. K. Rowling, em Harry Potter e os Talismãs da Morte, Partes 1 e 2, respectivamente de 2010 e 2011, com realização de David Yates. Aina fez mais dois filmes, Belle du Seigneur (2012), de Glenio Bonder e Uma Promessa (2013), de Patrice Leconte, o seu último filme.
Vai fazer falta a luz e a imagem de Eduardo Serra.
Bons filmes e até à próxima!
Este texto não segue o novo Acordo Ortográfico