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Diretor Fundador: João Ruivo Diretor: João Carrega Ano: XXVII

Opinião O PODER DAS PALAVRAS E AS PALAVRAS DO PODER

“São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.”


O excerto deste belíssimo poema intitulado “As Palavras”, de Eugénio de Andrade, está publicado na íntegra na Editora Limiar. Recomenda-se não só a sua leitura, como a revisitação da obra deste poeta, infelizmente esquecido, como tantos outros. Aliás, nos tempos que correm a poesia parece ter sido relegada para um sótão de velharias que já poucos apreciam. É lamentável o distanciamento dos portugueses da poesia e dos seus poetas.
A palavra poética não se limita a uma mera fruição de prazer intelectual. Existe nela uma riqueza, uma capacidade de gerar evocações, uma densidade específica que está bem para lá do seu sentido imediato. Para quem as consegue sentir e interpretar, descobre que elas ultrapassam a dimensão do significado para implodirem no não dito, ou seja, nas sugestões que evocam. Quando tal sucede, cria-se uma dimensão outra de múltiplos sentidos, que ativam as nossas redes neuronais e provocam associações de pensamentos originais, sentimentos e intuições capazes de oferecer ao leitor riquezas surpreendentes que só as palavras dos grandes poetas suscitam.

O mundo da poesia trata o poder da palavra de forma singular. Porém, na comunicação cotidiana utilizamos de forma diversa pelo menos duas funções da linguagem - a denotativa e a conotativa. Recorde-se que a função denotativa liga o significado de cada termo ao seu sentido objetivo, factual, enquanto no universo da conotação as palavras estão impregnadas por sentimentos, emoções e qualidades subjetivas.
Os textos de natureza científica usam exclusivamente a função denotativa da linguagem pois assim determina o rigor dos conteúdos neles vertidos. A dimensão conotativa da comunicação está prenhe de emoção e sentimentos. Porém escassas são as formas de comunicação que usam apenas uma das duas funções da linguagem. A sua utilização varia em função dos objetivos de quem comunica, uma vez que se pretende que a relação entre palavras, ideias e ações gere um triângulo tão isósceles quanto possível.
No pensamento atribuído ao escritor inglês Chesterton considera-se que toda a ideia que não se transforma em palavra é uma ideia inútil e toda a palavra que não se transforma em ação é uma palavra inútil. A relação que Gilbert Chesterton formula entre ideias > pensamentos > ações úteis pressupõe a formatação de um triângulo utilitário perfeito, mas redutor pois «os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo.», tal como definiu o filósofo Ludwig Wittgenstein.

Uma última referência deverá ser feita à relação entre o poder da palavra e as palavras do poder: trata-se de um sistema funcional de comunicação que visa (deve visar) a correta relação entre quem dirige e quem é dirigido. No mundo ideal seria, portanto, a função denotativa a dominar o registo comunicacional de quem governa. No mundo real, nem sempre tal sucede: denotação, conotação e outras formas meta linguísticas confundem-se, misturam-se e essa confusão não é obra do acaso, nem pura coincidência. As palavras do poder são manipuladas por quem o ocupa porque o “gene egoísta”, tal como Richard Dawkins o caracteriza, tem tendência a orientar palavras e ações em função de interesses pessoais. Daí resulta que em tempos de guerra a verdade seja invariavelmente a primeira a morrer: os interesses antagónicos dos genes egoístas entrincheirados de cada lado da barricada determinaram a sua morte e assim o poder da palavra jaz ante a força bruta das palavras do poder.

Carlos Correia