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Valter Hugo Mãe, escritor 'Uma graçola no Tik Tok transforma um imbecil num herói'

21-07-2025

Valter Hugo Mãe é um dos expoentes máximos da nova literatura portuguesa e o lançamento do seu mais recente livro foi o mote para uma conversa com o “Ensino Magazine”. Educação, racionalidade, emoção, moral, ética e inteligência Artificial, são pontos fortes do seu olhar panorâmico para melhor compreender o ar dos tempos em que vivemos.

Na nota de imprensa que promove este seu mais recente livro, «Educação da Tristeza», pode ler-se: «Há livros que se leem com os olhos, outros com o coração. Este lê-se com a alma toda». Como autor, revê-se nesta descrição?

Mais ou menos. Para ser franco, não sei quem é que escreveu essa nota (risos). Explico: Há qualquer coisa em «Educação da Tristeza» que parece deixar-me sem alma. Por isso, tanto podia dizer que o livro contém a alma toda do autor, como podia dizer que escrevi este livro porque me fugiu a alma e há uma sensação de vazio que precisa de ser, novamente, preenchido.

Trata-se de um relato autobiográfico, duro e cru, onde descreve a perdas de pessoas, que lhe eram muito próximas, e entretanto falecidas. Era um trabalho que tinha em mente há muito tempo?

Este é um livro que se escreve muito à revelia. É feito, sem querer ser feito. Gostaria de não ter escrito este livro, por não ter razões para o fazer. Tentei, inclusive, não o fazer. Quando o meu sobrinho foi diagnosticado com a doença tentei não abordar o assunto. Fiquei quieto. Assumir publicamente o diagnóstico seria uma forma de aceitar sem esperança que nada havia a fazer. O silêncio relativamente à questão (e, sobretudo, um silêncio literário) era como se uma oportunidade para que a realidade mudasse ou fosse outra. E a realidade não mudou. Infelizmente, este processo da doença do meu sobrinho acabou por ser intercetado pelo falecimento da Isabel, uma grande companhia, de 30 anos de vida inteira. São no fundo estas duas situações que acabam por “inventar” o livro. A morte da Isabel, para além de uma necessidade de diálogo, fez com que eu esteja mais do que triste, furioso. E, na verdade, parece que estou furioso com a Isabel por ela ter tido a triste ideia de morrer subitamente, sem aviso prévio...

Qualquer perda é insuportável. O luto, transformado numa obra literária, também pode ser uma forma póstuma de amor?

Sim, no fundo, transformar aquilo que parece ser nada, em alguma coisa. A ausência parece querer ser nada, mas é o livro que impõe alguma coisa, que pode ser a “presença” da Isabel e do meu sobrinho. Em suma, o livro traz zanga, mas educa a tristeza, afirmando o imperativo de ver a memória dessas pessoas continuadamente celebrada.

De que modo é que esta forma de luto pode servir para tocar alguns dos seus leitores que podem ter sofrido perdas como a sua?

Todos nós, tarde ou cedo, vamos experimentar tragicamente estas perdas. Os textos foram escritos por mim, mas pertencem a toda a gente. É uma auscultação de uma grandeza que é universal. Do retorno que tenho tido de várias leitores é que têm encontrado no livro estratégias para si mesmos. De alguma forma, apenas o Camões escreveu aqueles sonetos de amor, mas aos 14, 15 ou 16 anos todos nos apaixonamos da mesma maneira. Não tivemos foi a capacidade de escrever aqueles sonetos, que é algo que me enerva, porque também adoraria tê-los escrito.

«Educação da tristeza» é o título do livro, mas também fala em educar para a felicidade, educar para o milagre e educar para a morte. Educar em todas essas dimensões é no sentido de transmitir valores e sensibilizar?

No sentido de melhorar e de corrigir. Tenho um livro para os mais novos em que digo que aqueles que aprendem, são aqueles que se corrigem. Só se cresce, melhorando. A educação é uma forma de correção permanente. Vamos sempre falhar, ter incompletudes e ignorâncias, mas a educação é a tentativa de irmos fazendo melhor algumas coisas, até que consigamos ser melhor gente. Estive recentemente no Brasil e num evento uma cantora muito famosa surgiu acompanhada pelo seu “personal trainer”. Se me perguntassem se gostaria de ser acompanhado por um “personal trainer”, eu responderia que preferia um “personal teacher”. Adoraria ter um professor a acompanhar-me em todas as horas. Em todos os instantes que tivesse uma dúvida ou uma angústia, socorria-me da sua sabedoria e conhecimento, possibilitando-me meditar e refletir sobre as coisas. «Como é que eu me safo disto? Como é que eu aprendo a lidar com isto?» A grande maravilha do mundo era se todos percebessemos que precisamos de uma escola contínua, precisamos que alguém qualificado nos ensine sempre alguma coisa. Aliás, entendo que deve-se estar sempre no lugar da aprendizagem e nada nos humaniza mais do que essa ideia de aprender, corrigir e melhorar.

Durante muito tempo achou que ia seguir a carreira de professor. Não foi por aí. Derivou para a literatura, mas tem escrito muito na defesa intransigente dos docentes. Apesar de serem o pilar do sistema de ensino têm visto a sua autoridade posta em causa, ao mesmo tempo que se intensifica a degradação do ensino público?

Sem dúvida. A docência está em perigo, na medida em que está problematizada e eu sei porquê: quer-se que as famílias se responsabilizem pelo custo do ensino. Por isso, a intenção de perigar a imagem do professor leva a uma aflição nas familias, que faz com que, ainda assim, optem por pagar caro, preferindo que os seus filhos andem em escolas privadas e privilegiadas. E é isto que leva à precarização do ensino público, das próprias famílias e da universalidade da sociedade. Todo o desprestígio que possa acometer aos professores acaba por ganhar corpo na formação dos alunos. São os alunos que, em última análise, pagam esse desprestígio. Um jovem dificilmente vai levar a sério uma experiência perante um professor que não foi motivado a respeitar. Se a mensagem que passa para os jovens, nas famílias, nas televisões e nas redes sociais, é que os professores são uns desvalidos, muito dificilmente vão compreender e aceitar que a pessoa que está diante de si tem importância para a sua vida. Em suma, em vez de estarmos a formar melhor gente, estamos a adiar a resolução do problema da ignorância das nossas sociedades.

Escreveu que «as escolas não podem ser transformadas em lugares de guerra». Nos últimos tempos, existiu guerra, com aspas e sem aspas, entre professores e tutela, com os alunos a assistirem?


Houve agressão. Muita agressão. Aliás, verificou-se uma burocratização do papel do professor, em que se parecia esperar dele tudo menos a docência.  Em vez de estar ocupado com o assunto e a matéria da aula, o professor estava atazanado com documentos.  O esvaziamemto das escolas das disciplinas e áreas mais humanizantes não é, certamente, por acaso. A matemática e a físico-química são importantes, mas a humanidade só se consuma quando as pessoas se expressam. Os exemplos são vários: quando um grupo de jovens ou crianças vencem as suas limitações e inibições e conseguem montar uma peça de teatro. Cantam e dançam diante dos outros. Trazem para dentro do lugar da escola aquilo que pode ter de único, como as suas identidades mais esdrúxulas e irrepetíveis. É aí que a humanidade vai acontecer. Agora, se ficarmos só pelos patamares dos resultados da matemática...

Isso leva-nos aos “rankings” e à competitividade, por vezes desenfreada, pelos melhores resultados...

Por exemplo. Temo que se ficarmos por aí, dificilmente este será o caminho para nos levar à felicidade. Em última análise, todas as ciências e todas as disciplinas deviam ter o mesmo resultado, que era agarrar-nos e abraçar-nos uns aos outros, juntarmo-nos, entendermo-nos e ajudarmo-nos. Tão simples quanto isto. Esta sim devia ser a prova de superação de todos os testes.

Este caldo de cultura em que as nossas sociedades estão mergulhadas está a impactar e a contribuir para a falência da educação?

Acho que sim. A educação vai muito para além da mera transmissão de conhecimento e informação. Não se pode nunca esquecer a sua dimensão ética e de construção do ser humano e ter associada uma ideologia que é humana. A escola, sendo um espaço de educação, não é apenas um local para ocupar o tempo e para veicular informação de modo maquinal, mecânico e sem relevância axiológica. A escola é axiologia pura, relevância antropológica e a sociedade em movimento, a acontecer.

E a quem deve caber o papel de educar: à família ou à escola?

As famílias, muitas vezes, não sabem o que estão a fazer. Ninguém garante que os pais tenham cultura suficiente para desempenhar esse papel. Para além disso, as famílias estão desestruturadas e infantilizadas. Vivemos uma espécie de folia pela juventude, em que pessoas com 50 anos ainda são consideradas jovens, o que significa que também se demitem da responsabilidade que deviam ter. Antigamente, aos 18 anos já se era um adulto e começava-se a votar. Hoje também se vota, é certo, com a diferença de ninguém esperar responsabilidade alguma a alguém com 18 anos. O que é errado, porque estamos a dizer-lhes que podem continuar a ser crianças e o próprio voto pode ser feito com a maior displicência e irresponsabilidade. É uma realidade que tem de ser revertida. Temos de exigir que uma pessoa de 18 anos se comporte como um adulto, vote como um adulto e esteja informado como um adulto – não necessitando, contudo, de ser um erudito.

Que fatores levaram até ao ponto que acaba de descrever?

Esta situação é fruto de gerações que foram sendo levadas para uma depauperação moral e cultural, em que as pessoas se orgulham da estupidez e da ignorância. Hoje pensa-se que a graça ou graçola é que são um exemplo de mérito. Uma graçola bem feita no Tik Tok transforma um imbecil num herói. São frequentes os casos de pessoas que se expõem até à náusea, dominando as conversas de toda uma sociedade durante um ou vários dias, e não propriamente por serem admiráveis, mas por veicularem algo muito próximo da indigência.

As atuais gerações já foram criadas em liberdade o que leva a que desconheçam o que conduziu a conquistar a liberdade. Quão perigoso é tomar por seguro certas conquistas que, afinal, podem não o ser?

Estamos, como se diz, perante as gerações mais bem preparadas, mas parece é que são as mais bem preparadas e posicionadas para assistir ao fim do mundo. É verdade que nunca tivemos tanta gente licenciada e este chavão da «geração mais bem preparada» até calhou bem como “slogan” político, mas tenho dúvidas que estes licenciados de hoje tenham a mesma qualidade dos jovens que completavam há uns tempos o 12.º ano. Veja-se, por exemplo, na área da literatura. Hoje em dia é gritante a forma como escrevem (ou não escrevem), já para não falar da construção de frases ou da contaminação por línguas estrangeiras, desde logo, o Inglês. Às vezes, conversando com certos jovens, há uns que me questionam como se diz determinada palavra em português. Mas têm permanentemente a janela para o mundo sempre aberta para os seus “influencers”, quando deviam dizer influenciadores...

Depreendo das suas palavras que não está propriamente otimista com o que esperar das atuais gerações?

Esta geração até pode ter uma preparação de caráter técnico, mas o mesmo já não se pode dizer em termos de dimensão humana, não correspondendo à maturidade da sua idade, por exemplo. Pelo que vejo, esta geração está preparada para ser para sempre jovem e para sempre infantilizada. Veja-se a forma como são tão atreitos a fanicos imediatos, por dá cá aquela palha, o que é uma demonstração de imaturidade. Nomeadamente ao nível de assuntos relacionados com o chamado politicamente correto em que têm logo uma imediata reação alérgica (o chamado «gatilho) a todas as idades, bem como a tudo o que saia do conforto do seu universo. Os assuntos devem ser todos debatidos, sem exceções e sem fricotes.

Os «ismos» do racismo e do populismo, para além de reações sem filtro e à flor da pele de intolerância, ódio e xenofobia expandem-se, sem freio. A este propósito, como cidadão, intelectual e homem de cultura, fica inquieto com o que lê, o que vê e o que ouve?

É cansativo, no mínimo.  A sociedade contemporânea está a substituir a racionalidade pela emoção.  Ou seja, toda a verdade assenta na emoção e não na ciência. As pessoas estão muito mais preocupadas em acreditar naquilo que sentem, do que naquilo que é evidente e lhes é provado. Por isso é que existe este negacionismo, esta estupidificação e esta rejeição da ciência, dos eruditos e do conhecimento académico, etc. Vivemos num século muito importante em que, por exemplo, as mulheres se levantam, panoramicamente, de uma ponta à outra. O feminismo é fundamental, a luta contra o racismo e fundamental, para que não se regrida nos valores. A xenofobia e a homofobia sempre estiveram por aí. O que se passa é que algumas pessoas estão a perder o medo e a sentir-se impunes o suficiente para praticarem crimes. Todos estes desafios devem ser enfrentados do ponto de vista da racionalidade, devolvendo estes temas à academia, ao ensino e à seriedade do estudo e da investigação. Se for a partir das emoções, nunca mais nos entenderemos. É como esperar que FC Porto e Benfica sejam campeões ao mesmo tempo e que os adeptos de ambos os clubes festejem abraçados. Isso não vai acontecer!

A Inteligência Artificial (IA) continua a progredir e a aperfeiçoar o seu caminho. As máquinas aprendem cada vez mais e melhor com o que é produzido pelos homens. Como antevê o futuro da escrita e das próximas gerações de escritores?
A IA está a maturar muito rapidamente. Tenho a impresão que para uma vasta multidão de pessoas que nunca se preocupou com o fundo humano das coisas a IA vai ser maravilhosa. Acredito que a IA vai fazer um livro do género de Agatha Christie em 5 segundos para delícia dos que gostam de policiais e de histórias que desvendem mistérios e enigmas. Noutra perspetiva, para os apreciadores de Bergman, Caravaggio, Maria Callas ou Lobo Antunes, a IA nunca vai conseguir lá chegar. É o cume da humanidade, uma dimensão quase sobrehumana. A perfeição das máquinas vai ter sempre um sabor sintético e postiço. No máximo vai servir apenas para coisas pragmáticas. Mas para o engrandecimento humano não creio que lá chegue.

Já confidenciou que sempre quis trabalhar de perto com a cultura. O seu livro ”O filho de mil homens”, editado em 2011, vai ser brevemente adaptado para um filme na Netflix, protagonizado pelo ator brasileiro Rodrigo Santoro. O alcance que as plataformas de “streaming” proporcionam podem dar-lhe um reconhecimento à escala global?

Sinceramente nunca espero nada e nunca conto com nada. O meu maior sonho é escrever sempre um livro melhor. Mas tenho de admitir que ser levado ao cinema por um realizador como o Daniel Rezende (o primeiro brasileiro a ganhar um Óscar com a «Cidade de Deus») e com a interpretação de um ator como o Rodrigo Santoro, é motivo de grande satisfação.  O filme deverá ser apresentado no Brasil, em setembro ou outubro, e deverá percorrer alguns festivais de cinema, na Europa. Sei que está finalizado, mas ainda não o vi. A minha curiosidade sobre o filme é tremenda. Já estou a imaginar o super-modelo Rodrigo Santoro na pele da personagem, o Crisóstomo, pescador das Caxinas. Asseguram-me que ele se transfigurou por completo.

 

A CARA DA NOTÍCIA

Vencedor do Prémio Literário José Saramago

Valter Hugo Mãe nasceu em Angola, a 25 de setembro de 1971. A obra deste escritor está traduzida em variadíssimas línguas, merecendo um alargado acolhimento em muitos países. “Deus na escuridão”; “As doenças do Brasil”;“Contra mim” (Grande Prémio de Romance e Novela - Associação Portuguesa de Escritores); “Homens imprudentemente poéticos”; “A Desumanização”; “O filho de mil homens”; “A máquina de fazer espanhóis” (Prémio Oceanos);”O apocalipse dos trabalhadores”; “O remorso de Baltazar Serapião” (Prémio Literário José Saramago, em 2007) e “O nosso reino”, são alguns dos livros mais aclamados. Escreveu ainda alguns livros para todas as idades, entre os quais: “Contos de cães” e “Maus lobos”, “O paraíso são os outros”, “As mais belas coisas do mundo”, “Serei sempre o teu abrigo” e “A minha mãe é a minha filha”.  Em 2025 a sua mais recente proposta literária é “Educação da Tristeza», com a chancela da Porto Editora. É o autor de uma crónica chamada “Autobiografia Imaginária”, no Jornal de Letras, e “Cidadania Impura”, no suplemento Notícias Magazine (Jornal de Notícias).

Nuno Dias da Silva
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