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Diretor Fundador: João Ruivo Diretor: João Carrega Ano: XXVIII

Helena Freitas, ecóloga e investigadora da Universidade de Coimbra Falta compromisso político para tratar a floresta

08-09-2025

Sem um pacto florestal e territorial, o país continuará «preso a uma espiral de tragédias, paliativos e perda inexorável de confiança». No rescaldo dos devastadores incêndios de agosto, Helena Freitas afirma que o preço do «atraso político e da inação» já se sente nas contas públicas e na vida das pessoas. Sobre a crise climática à escala global, a investigadora da Universidade de Coimbra não tem dúvidas: «As novas gerações herdarão um Planeta diferente.»

Nos últimos dias de agosto, tinham ardido em Portugal continental 280 mil hectares de terreno, o correspondente a 3 por cento do território nacional. Sabendo que ainda temos setembro e outubro pela frente, meses tradicionalmente quentes e pouco húmidos, este ano arrisca ser o pior de sempre em matéria de incêndios?

É muito provável que enfrentemos novas condições favoráveis a incêndios ainda este ano. A floresta mantém-se vulnerável à propagação e podemos aproximar-nos dos piores valores já registados (400 a 500 mil hectares). Esperemos que não, mas a situação deve servir de alerta e reforçar a preparação sempre que a climatologia nos colocar em risco. Nessas circunstâncias em particular, teremos de revelar maior capacidade de antecipação, investimento em prevenção e sistemas de vigilância permanentes, não apenas respostas reativas quando o incêndio está instalado.

Em junho de 2017, os incêndios de Pedrógão Grande expuseram, de forma brutal, o abandono a que vastas regiões do país estavam votadas. Na altura, coordenava a Unidade de Missão para a Valorização do Interior e disse, publicamente, que acreditava que se ia virar uma página.  Oito anos depois pouco mudou. Do ponto de vista da ação política, há muita retórica e falta um compromisso alargado para adotar medidas perenes e de longo prazo, nomeadamente um pacto florestal? Desfraldar a bandeira da reforma florestal não dá votos?

Acreditei, em 2017, que tínhamos chegado ao limite e que se abriria uma nova página. Coordenei então, no âmbito do Programa Nacional de Coesão Territorial, medidas como o cadastro simplificado (BUPi), mas a falta de investimento comprometeu a sua expressão territorial que hoje está apenas nos 30%. É urgente um compromisso político de longo prazo que coloque a floresta e o território no centro das políticas públicas. A transição agroflorestal é inadiável, mas não gera votos - e as comunidades mais vulneráveis, despovoadas e afastadas do centro político, contam pouco na lógica eleitoral. A verdade é que, sem pacto florestal e territorial, vamos continuar presos a uma espiral de tragédias, paliativos e perda inexorável de confiança.

O ministro da Agricultura defendeu que o recurso à pastorícia extensiva seria uma forma de reduzir a carga combustível nas florestas. Concorda?

Concordo. A pastorícia extensiva reduz a carga combustível e gera rendimento, mas está em declínio. Precisamos de compensar não apenas pela remoção de biomassa, mas também pelos serviços de ecossistema que garante: manutenção da paisagem em mosaico, fertilidade do solo, biodiversidade associada. Só modelos de gestão de base local, com apoio público estável e valorização justa, podem revitalizá-la.

Nas intervenções públicas que fez, nas últimas semanas, em diversas televisões, alertou para o impacto que estes devastadores incêndios vão ter no deslaçamento entre sucessivas gerações de famílias, abandonando-se milhares de culturas e pequenos negócios. Em muitos locais do interior será o irreversível definhamento de uma economia florestal?

Não tenho dúvidas: estamos perante a última geração com uma ligação funcional e afetiva ao território. É a geração que preserva memória, pertença e disponibilidade para a mudança. Depois, será diferente e provavelmente mais difícil de recuperar. Se não criarmos condições para fixar pessoas e gerar rendimento, arriscamos perder para sempre a continuidade social, cultural e económica de vastas regiões do interior.

As teorias científicas apontam que estamos numa nova época geológica chamada de Antropoceno, em que a humanidade está a alterar as dinâmicas do planeta numa escala só comparável às grandes forças naturais. É isto que explica, por exemplo, que esta chamada nova geração de incêndios seja cada vez mais destrutiva e «incombatível»?

Sim. Os incêndios de nova geração são mais destrutivos porque a floresta cria o seu próprio ambiente propício à propagação. Num contexto climático de temperaturas elevadas, ondas de calor, alteração do regime hídrico, solos degradados e vegetação em stress, as condições para incêndios extremos estão reunidas. Estes fogos ultrapassam a capacidade de resposta convencional e exigem novas estratégias de ordenamento, prevenção ativa e adaptação às alterações climáticas.

No final de agosto escreveu no jornal «Público» um artigo em que referia que «os ecossistemas vivem próximo de limiares críticos, ou seja, pontos de não-retorno em que a resiliência se esgota e a degradação se acelera.» A degradação ambiental a que se assiste é irreversível?

Em muitos casos, sim. A perda de espécies é irreversível e isso significa impactos imprevisíveis no funcionamento dos ecossistemas. Estamos a entrar em mundos distintos, que não serão recuperáveis. Não é apenas uma questão ambiental: é também económica, social e de segurança, porque ecossistemas degradados deixam de prestar serviços essenciais à vida humana, como água limpa, ar puro e solos férteis.

Qual é o peso e a dimensão da fatura climática que vai (ou já está a) cair sobre os ombros das atuais gerações?

As novas gerações herdarão um planeta diferente. Espero que seja um tempo de regeneração, não de extinção. A realidade climática exige acelerar a transição energética e gerir de forma inteligente os recursos naturais. A “fatura climática” já está a ser paga: eventos extremos, perdas económicas, migrações forçadas, desigualdades agravadas. O preço do atraso político e da inação é altíssimo e não é abstrato - já se sente nas contas públicas e na vida das pessoas.

A disciplina de Cidadania e Desenvolvimento terá a partir do próximo ano letivo um novo modelo, com aprendizagens essenciais comuns a todas as escolas, com oito domínios obrigatórios em vez das 17 áreas temáticas que existiam até agora: sustentabilidade, é uma dessas vertentes. Considera este contributo da escola pública portuguesa suficiente para formar e sensibilizar os adultos do amanhã?

É positivo que a sustentabilidade seja eixo prioritário na escola pública, mas não basta. Precisamos de uma escola mais aberta à intervenção cívica concreta e mais ligada à natureza. O desafio não é apenas transmitir conceitos, mas criar experiências transformadoras: contacto direto com ecossistemas, participação em projetos locais, envolvimento em decisões comunitárias. É assim que se forma cidadania ambiental ativa.

Defendeu num artigo publicado recentemente no «Diário de Coimbra» que «nenhuma transformação será duradoura sem um investimento sólido em educação, cultura e cidadania territorial». É a fragilidade do nosso sistema educativo que explica muitos dos atrasos estruturais enquanto país?

Sem dúvida. A fragilidade não resulta apenas de um défice histórico, mas sobretudo das descontinuidades que introduzimos nas reformas educativas. Nas últimas décadas houve avanços significativos que permitiram atenuar desigualdades e ampliar o acesso à educação, mas o sistema continua a revelar falta de coerência e de continuidade estratégica. Precisávamos de ter consolidado um modelo mais robusto, diverso e inclusivo, capaz de formar cidadãos com as competências adequadas para responder aos desafios do nosso tempo de forma equilibrada e justa.

Sustentabilidade é precisamente a palavra que está na boca de todos. Confia na bondade da espécie humana para adotar práticas adequadas aos desafios que vivemos ou a tentação do recurso ao «branqueamento ambiental» (greenwashing) acabará por levar a melhor?

O risco de greenwashing existe, mas a sustentabilidade é um desígnio coletivo. O desafio é educar, comunicar com transparência e capacitar para o escrutínio. A verdadeira mudança só acontece quando há coerência entre discurso e prática, e quando consumidores e cidadãos estão preparados para exigir responsabilidade a empresas e governos.

Entre 10 e 21 de novembro, em Belém, no Brasil, realiza-se a COP30. O facto de o país organizador sediar cerca de 60 por cento da floresta amazónica dá-lhe esperança e expetativa sobre o que possa vir a ser decidido?

É verdade que as COP perderam credibilidade, muitas vezes capturadas por interesses económicos. Mas não podemos abdicar delas: são momentos de compromisso político global. A COP30, na Amazónia - ecossistema único e sob enorme pressão, mas também casa de comunidades indígenas - deve ser uma oportunidade para recolocar a centralidade ambiental e social na agenda. Espero que esta localização simbólica ajude a recentrar o debate, trazendo para o palco global os que mais protegem e dependem diretamente da floresta e de forma geral dos ecossistemas.

O papel da ciência tem vindo a ser questionado, nomeadamente através das fake news, teorias da conspiração e outras lógicas obscurantistas. Como cientista, acredita que é no trabalho de investigadores de todo o mundo que pode estar a solução para muitas das maleitas de que padece o Planeta?

Sim. Ciência, tecnologia e inovação são ferramentas decisivas para encontrarmos soluções sustentáveis para os grandes problemas do planeta. Mas a ciência precisa também de ser comunicada com clareza, de dialogar com a sociedade e de estar integrada em processos de decisão política. Sem esta ponte, o risco é a ciência ficar isolada, enquanto o obscurantismo avança.

A rápida obtenção da vacina para a Sars-Cov2 foi um momento de grande reconhecimento para a ciência em todo o mundo. No nosso país, existe fluidez e continuidade necessária no diálogo e proximidade entre a ciência/cientistas e a sociedade civil/decisores?

A rápida obtenção da vacina foi um marco histórico e reforçou a perceção positiva da ciência junto da sociedade. Criou-se um momento de proximidade e confiança que, infelizmente, não foi plenamente aproveitado para fortalecer o investimento público e estruturar uma ciência mais orientada para os desafios societais. Em Portugal, os canais de diálogo entre a comunidade científica, a sociedade civil e os decisores políticos permanecem frágeis e descontínuos. Falta continuidade e densidade nesta relação para que a ciência possa ser verdadeiramente útil na definição e implementação de políticas públicas que sustentem a economia, a prosperidade e o bem-estar coletivo.

São muitos os sinais de uma sociedade em colapso, em múltiplas vertentes e dimensões, sendo a área ambiental, porventura, a mais gritante. Os alertas que caminhamos para o fim da espécie humana devem ser tidos em conta ou são um manifesto exagero?

Os alertas não são exagero. As ameaças ambientais são reais e já impactam o mundo, sobretudo os mais vulneráveis. A tendência de adiar e lateralizar problemas é perigosa - precisamos de enfrentar a realidade. A questão já não é “se”, mas “como” vamos lidar com os impactos. Negar a escala da crise só torna mais dolorosa e cara a adaptação futura.

Refere que a humanidade tem tratado a natureza de «forma algo leviana» . Preservar a biodiversidade no Antropoceno é, porventura, o desafio mais crítico com que nos confrontamos na atualidade? 

Sem dúvida. Preservar a biodiversidade é um dos maiores desafios do nosso tempo. Continuamos a promover um modelo de desenvolvimento assente na exploração desmedida dos recursos naturais, ignorando o equilíbrio vital dos ecossistemas. Essa lógica transforma o planeta em benefício de uma única espécie, esquecendo que somos parte integrante da natureza. O risco é não apenas ecológico, mas também ético e moral: a forma como tratamos a biodiversidade reflete o tipo de sociedade que queremos ser e o legado que deixaremos às gerações futuras.

A sueca Greta Thunberg é o rosto mais mediático de uma geração que resiste e aponta o dedo aos atropelos climáticos. Por cá, vários ativistas têm enveredado por manifestações mais radicais, como paralisando o trânsito, acorrentando-se em edifícios públicos ou em empresas privadas e até atirando tinta colorida sobre os políticos. É tolerante com o rumo que tomam as ações de alguns ativistas, em Portugal e no mundo?

Nem sempre concordo com os métodos, mas compreendo a frustração. Não seria punitiva na maioria dos casos. As ações, sobretudo dos jovens, são um sinal de vitalidade cívica e um apelo permanente à mudança que precisamos. O que temos de fazer é canalizar essa energia para processos participativos eficazes, em vez de a deslegitimar. Se os jovens sentem que não são ouvidos pelos meios institucionais, é natural que busquem formas mais radicais de se fazer notar.

 

A CARA DA NOTÍCIA

Cátedra UNESCO em Salvaguarda da Biodiversidade

Helena Freitas nasceu em Mogege (Famalicão), a 24 de setembro de 1962. É professora catedrática de Biodiversidade e Ecologia na Universidade de Coimbra e foi galardoada, em 2024, com o Prémio Ernst Haeckel da EEF pelos seus contributos para a ciência ecológica europeia. Atualmente, coordena o Centro de Ecologia Funcional, supervisionando iniciativas na interseção da ciência, bem-estar social e sustentabilidade ambiental. A sua experiência abrange uma vasta gama de áreas científicas, incluindo ecossistemas mediterrânicos, biologia da conservação, ecologia microbiana e políticas para a sustentabilidade. Tem fomentado a investigação ecológica aplicada, liderando vários projetos da UE em agroecologia, setor agroalimentar e gestão da paisagem. É titular da Cátedra UNESCO em Salvaguarda da Biodiversidade para o Desenvolvimento Sustentável desde 2013 e tem liderado uma grande iniciativa EEA Grant, destacando o valor das 12 Reservas da Biosfera da UNESCO portuguesas. Para além da academia, desempenhou funções de gestão e políticas e ocupou cargos-chave em organizações ambientais (fundadora e presidente da Liga para a Proteção da Natureza, da Sociedade Portuguesa de Ecologia, e vice-presidência na Sociedade Europeia de Ecologia). Recebeu inúmeras distinções, entre as quais a Comenda da Ordem do Infante D. Henrique, em 2000, e o Prémio «Portugal Inspirador» de Personalidade do Ano em Sustentabilidade, em 2022.

Nuno Dias da Silva
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