Monitorizar o tempo gasto e os conteúdos visionados nos ecrãs é uma responsabilidade de que os pais não se podem demitir. Para a psicóloga Ivone Patrão, os encarregados de educação devem agir aos primeiros sinais de dependência dos seus filhos, advertindo que, se nada for feito, tal contribuirá para um «perigoso» reforço da identidade “online”.
Defende, no seu mais recente livro, que ainda vamos a tempo para «resgatar os nossos filhos dos ecrãs». Com a palavra resgatar quer transmitir que há um aprisionamento dos mais jovens ao mundo da tecnologia?
Sim. Mas é preciso sublinhar que não estamos todos dependentes. Há, conforme os estudos,10, 15 ou 20 por cento da população, que se encontra dependente da tecnologia. Os restantes, não estando dependentes, encontram-se em risco. A questão aqui centra-se na qualidade da supervisão que damos a um jovem ou a uma criança que se encontra a usar a tecnologia. Não quero com isto ter um discurso de culpabilização dos pais – até porque também sou mãe – mas com o título do livro procuro chamar à atenção, provocar e também lançar um apelo à reflexão sobre como estamos a supervisionar, tanto ao nível do tempo gasto e nos conteudos visionados. Se um estudo académico concluir que, nesta dimensão, não existe literacia digital, nem uma boa gestão da tecnologia, então temos de saber que é preciso investir neste campo.
No domínio da literacia digital e tecnológica há ainda um longo caminho a ser feito?
Estamos em “baysteps”. Penso que deviamos continuar na sensibilização através da perceção de risco. Acredito que se seguirmos este rumo iremos ter mudanças de comportamentos.
Atualmente, tanto o universo familiar como o universo escolar são confrontados com grandes desafios. Este contexto adverso torna mais difícil este objetivo?
As famílias, hoje em dia, assumem diversas formas e modelos. A própria comunidade escolar está a ser surpreendida com o impacto que a evolução tecnológica está a ter no seu dia a dia. A dificuldade nas relações e de estarmos ao lado uns dos outros, faz com que a tecnologia entre com muito mais facilidade. Costumo dizer que a tecnologia é um concorrente desleal. É mais rápida, mais acessível, mais chamativa e muito mais recompensadora do nosso comportamento. É por isso que os abraços, a conversa e o contacto olhos nos olhos ficam, muitas vezes, para um segundo plano.
Refere que estamos a assistir a um reforço da identidade “online”. Isto acontece em detrimento da identidade real e genuína de um ser humano?
Sim, estamos a assistir a um défice de competências de socialização. O reforço da identidade “online” é muito perigoso e pode gerar personalidades díspares entre o que eu sou “online” e o que sou “offline”. Se houver discrepância podemos estar a falar de um problema de saúde mental – o que é especialmente delicado se estivermos a falar de crianças ou adolescentes em que o cérebro está em desenvolvimento. E o eu “online” vai prevalecer, porque é o que tem mais “likes”, mais visualizações, etc. Na vida “offline”, não temos, de repente, cem pessoas a dizer «estás muito giro(a)!».
Defende que se deve estimular o lado “offline” da vida. Esta dimensão está a ficar relegada para segundo plano?
Falamos muito de estratégias para abordar a vida “online”, mas esquecemo-nos da vida “offline”. Como é que estimulamos a linguagem de uma criança? E a sua parte motora? E a socialização? E a aprendizagem? São competências que o próprio mundo “online” pode desenvolver, mas não consegue estimulá-las da mesma maneira. A comunicação ou a socialização que é feita “online” não é igual à socialização presencial. O meu cérebro continua a precisar do abraço, do cheiro, etc. Aliás, vários estudos apontam que os que só vivem “online” (“hikikomori”, nome dado pelos japoneses) são os mais deprimidos e evidenciam perturbações de personalidade. As pessoas que se radicalizam na relação com a tecnologia sofrem de patolagia mental.
Está comprovado que a tecnologia é aditiva e os algoritmos são concebidos para gerar essa resposta do ser humano. Como é que funciona essa construção?
As máquinas fazem a leitura dos nossos comportamentos. Com os nossos “likes” diários vamos treinando as máquinas e as redes sociais para elas nos darem os conteúdos que mais gostamos. Sem supervisão, será o algoritmo a educar as nossas crianças e os nossos jovens. Nós não podemos permitir isso. Em estudos, se analisarmos o cérebro através de ressonância magnética, um dependente de cocaína e outro dependente de um jogo “online”, percebemos que se registam as mesmas alterações estruturais e funcionais. Desde logo, comprova-se que existe dependência. Há autores que até dizem dependência «com substância» e dependência «sem substância». Repare no seguinte: o cérebro direciona-se para uma atividade onde está confortável, a chamada zona de bem-estar. Se eu tiver boa “performance” num jogo “online”, vou ter validação, vai aumentar a minha autoestima e será produzida a dopamina. É por isso que queremos sempre lá voltar. Comparativamente, muito dificilmente há uma atividade “offline” que seja recompensadora de forma tão rápida e eficaz. É isso que justifica o escapismo para o jogo “online”. Só que esta gamificação não nos traz nada de positivo.
Por este caminho não estamos a subverter os valores de uma geração, em que se torna mais importante ter validação “online” do que propriamente no mundo real?
Percebo a pergunta que formula, mas não se pode afunilar a questão. Se a nossa vida relacional for só feita disso, então estamos muito pobres. A vida não pode ser só ser um ótimo aluno, nem pode só ser um exímio jogador “online” ou somente receber “likes”nas redes sociais. Acho que é fundamental olharmos para o processo, de forma integrada, até à obtenção de resultados. Já sobre as redes sociais a pergunta que se coloca é: por que é que toda a gente vê e segue? Faz-me lembrar as experiências no âmbito da psicologia social de Moscovici e Asch, que punham as pessoas a olhar para linhas do mesmo tamanho, sendo que uma das linhas não existia. Os participantes da experiência eram pagos para dizer que as linhas eram todas iguais. Menos um. Que não sabia. Mas confrontado com as respostas que ouvia, acabou por seguir a opinião dos restantes, mesmo sabendo que eles estavam errados. No fundo, esta experiência explica a tendência para todos estarem nas redes sociais.
Os casos mais severos de dependência digital devem requerer terapia, a chamada desintoxicação digital?
As situações de risco de dependência requerem uma intervenção de âmbito clínico. Se for um caso moderado, será uma intervenção breve. Já as situações mais graves, requerem uma abordagem clínica mista, ou seja, ao nível familiar e com o próprio envolvido, seja ele um adulto, um jovem ou uma criança. Na maior parte dos casos a própria pessoa não reconhece que tem um problema, à semelhança das outras dependências, com substâncias. Quero sublinhar que a intervenção clínica não retira a tecnologia aos visados, até porque vivemos num mundo em permanente transformação digital. O que se faz é um uso saudável da tecnologia e uma adequação para aquela pessoa, à sua profissão e ao contexto em que se move. Quando a situação envolve adolescentes, é preciso fazer a intervenção em rede, com a comunidade escolar, os diretores de turma, implementando medidas em sala de aula.
O Governo tenciona proibir “smartphones” nas escolas nos 1.º e 2.º ciclos e limitar o uso entre os alunos do 3.º ciclo, tornando regra as recomendações feitas no início do ano letivo 2024/2025. Está de acordo?
No livro, a esse propósito, faço uma pergunta provocatória: será que estamos com ciúmes dos telemóveis dos miúdos? Não concordo com a proibição por proibir. Vamos começar um novo ano letivo, em setembro, e defendo que se faça um trabalho de auscultação com alunos, pais e professores. A comunidade, em conjunto, é que deve decidir as medidas a aplicar. Quando se decide de cima para baixo, só proibir por proibir, os miúdos são muito criativos e vão contornar as regras. Se passarmos a mensagem aos alunos que a dependência tem impacto na saúde mental, estou certo que eles perceberão o alcance desta sensibilização e ficarão mais despertos para a conversa. Tenho vários exemplos de escolas que têm feito isto e avançaram com medidas distintas.
É convidada frequentemente para falar em estabelecimentos de ensino. Qual é a sua abordagem, sobre este tema, com os alunos?
Quando vou a estas escolas falo com todos: alunos, professores e pais. Estas ações de sensibilização são muito importantes, mas normalmente antes desafio-os a responderem a um questionário e no dia em que vou à escola apresento os resultados. Uma das grandes conclusões desta investigação é a utilização do telemóvel à noite. Antes de adormecerem. E procuro alertá-los que este uso tardio tem grande impacto na higiene do sono e é fortemente prejudicial ao rendimento escolar, ao nível da atenção e concentração. Muitos deles, por falta de sono, estão a dormir nas aulas. Já para não falar da perda de criatividade que o uso prolongado destas tecnologias gera.
Uso o termo «tecnochucha» para caracterizar a dependência do telemóvel...
Sabe, os jovens ficam muito indignados quando lhes pergunto se usam chucha. Mas usar o telemóvel na cama ou mesmo durante noite pode ser uma chucha, que é o que se dá aos bebés quando acordam e choram.
Revelou, recentemente, o caso de um ”gamer” que tinha o bacio ao lado da cama para não ir à casa de banho fazer as suas necessidades. Isso é um caso-limite?
Sim, foram os pais que vieram pedir ajuda clínica. Mas, entretanto, em diálogo com outros colegas, descobrimos situações semelhantes. Estes jovens vão acumulando sinais para o exterior: absentismo escolar, abandono da socialização e do exercício físico, não fazer refeições em familia, não dialogar, etc. São muitos sinais e limites ultrapassados. Trata-se de um jovem e de uma família em sofrimento que têm de ser ajudados. Mas não se pode esperar tanto e ficar a olhar para o acumular dos sinais. Quando se entra numa zona de dependência é preciso agir, rapidamente.
A série «Adolescência», exibida na Netflix, registou um grande impacto em todo o mundo. O facto de ter apresentado linhas vermelhas que foram ultrapassadas por um jovem e que acabou por cometer um homicídio foi importante para trazer o tema para a atualidade?
Sem dúvida. Temos a crença que um jovem em casa, no seu quarto, está bem e em segurança. Urge combater e desmistificar essa crença. Um jovem fechado em casa, no seu quarto, e na posse de tecnologia, tem uma janela aberta para o mundo e pode estar a receber muitos estimulos que não são nada positivos para a definição da sua identidade e desenvolvimento pessoal. A tecnologia pode ter um lado muito positivo, nada contra, mas não substitui os pais, por exemplo, nem a educação, nem a socialização que precisamos de ter enquanto seres humanos. Para quem pensava diferente, tenho más notícias: a tecnologia não veio para ser pai ou mãe, veio para ser mediadora e ferramenta.
Já aqui falámos de regras, compromisso, estratégias e supervisão. Mas é possível atingir esses objetivos quando são os próprios encarregados de educação a estarem deslumbrados com o uso das novas tecnologias?
Pois, está tudo em «tecnopaixão». Os nossos filhos tanto nos veem com o aparelho nas mãos, como nos veem nas redes sociais e até espreitam os nossos interesses e partilhas “online”. É preciso ter responsabilidade, que não se esgota na família. Os professores também têm esta responsabilidade de serem um modelo educacional positivo.
A CARA DA NOTÍCIA
Dependência e cibersegurança
Ivone Patrão é psicóloga clínica, com mestrado e doutoramento em Psicologia da Saúde. É docente e investigadora no ISPA – Instituto Universitário e no “Applied Psychology Research Center Capabilities and Inclusion” (APPsyCI). É também psicoterapeuta, na vertente familiar e sistémica. É especializada na área da ciberpsicologia e formadora no domínio dos comportamentos “online” (dependência e cibersegurança) no contexto educativo, comunitário e empresarial, assumindo a coordenação do estudo “Ciber Young Security: Comportamentos Ciberseguros em Jovens Portugueses”, numa colaboração entre o ISPA e o Centro Nacional de Cibersegurança. «Ainda vamos a tempo – o que podemos fazer para resgatar os nossos filhos dos ecrãs» é o livro que lançou, com a chancela da Contraponto, que inclui um prefácio do psiquiatra, Daniel Sampaio.