À margem da apresentação, em Lisboa, dos livros que fazem a retrospetiva de três décadas de uma carreira sempre ao mais alto nível, Pedro Abrunhosa, em entrevista exclusiva, fala sobre as redes sociais, a cultura, o sistema educativo, sem esquecer o impacto da Inteligência Artificial para os autores.
Os livros agora editados, «Cancioneiro» e «Vem abrir a porta à noite», fazem, alguma forma, a retrospetiva e o balanço de 30 anos de uma carreira consistente e coerente, adaptando-se ao evoluir do tempo, mas mantendo a essência?
São edições que contam a história até aqui. O «Cancioneiro» tem as canções praticamente todas, em partitura e cifra. Enquanto o «Vem abrir a porta à noite» tem as letras todas, de forma integral. Creio que o escritor de canções só amadurece com o tempo. É o cristalizar de 30 anos de escrita, vamos ver o que há daqui para a frente.
O arranque aconteceu com «Viagens», em 1994, e ainda hoje se pode dizer que é a referência e tido como o seu melhor álbum de sempre. Lídia Jorge diz mesmo que «a nossa vida nunca mais foi a mesma». Sentiu-se, de alguma forma, uma espécie de iconoclasta e um revolucionário, ainda na primeira metade doa década de 90?
Não. Em «Viagens» sou apenas um músico com uma visão de um Porto que tem a sua idiossincrasia e terreno próprios. São narrativas pessoais sobre a noite, sobre problemas daquela época que, felizmente, agora estão algo mais dirimidos, como é o caso da SIDA. Portanto, eu coloquei nesse disco uma realidade que me é muito próxima, mas que acabei por perceber que também era a realidade de muitos portugueses. Em suma, o grande trunfo do disco «Viagens» é ser genuíno.
Tem sido uma larga carreira e recheada de sucessos. Por exemplo, «Tudo o que eu te dou», «Não posso mais» ou «Se eu fosse um dia o teu olhar», são canções que por serem hinos de sucessivas gerações já pertencem mais ao público do que a quem as compôs?
Quem faz canções tem de ter a noção que tem de contar uma história em 3 minutos. E a canção tem de contar o que se passa, uma história, mas também tem de ter associada uma recompensa. E em algumas composições existe um perfil mágico que toca as pessoas, mas ninguém sabe, em concreto, a técnica que faz com que isso aconteça. Por isso, quando a canção consegue esse impacto e essa emocionalidade junto das pessoas o escritor de canções concretizou-se. Uma vez mais é a proximidade entre aquele que escreve e o público. É um “métier” curioso esta coisa de escrever canções…
Alia uma musicalidade inconfundível a uma espessura literária muito vincada. «Trovador do Porto» ou «Senhor da palavra», por qual destas designações prefere ser reconhecido?
São lindíssimas expressões. «Senhor da palavra» não direi, mas «Trovador do Porto», na sequência da grande escola trovadoresca portuguesa, é algo que posso admitir. Não nos podemos esquecer que a trova é uma loa que num Portugal e numa Europa medieval, e até na Antiguidade, passava de terra em terra aquilo que tinha acontecido e que era digno de nota. E tanto podia ser um amor desavindo ou uma batalha. A «Odisseia», que de resto era cantada, não deixa de ser uma trova. Posso considerar que faço parte de um grão de areia de escritores de canções – e em Portugal temos muitos – que contam aquilo que vivem e aquilo sobre o qual estão próximos, servindo-se para tal de um alaúde, uma guitarra ou, no meu caso, um piano.
O atual ar dos tempos vive muito de imagens, de lateralidades e do efémero. Sente que a força da palavra perdeu inexoravelmente espaço nas nossas sociedades?
Sim, a força da palavra, da palavra profunda, e da racionalidade. Porquê? Porque se premeia a palavra superficial e que nomeia o outro enquanto inimigo, apelando aos mais básicos instintos tribais da humanidade. Por outro lado, a arte eleva e dignifica, colocando o homem num outro patamar. Toda a escrita e toda a palavra, no sentido artístico e poético, é uma elevação do homem. E o que hoje assistimos no uso da palavra é a um enorme empobrecimento da mensagem. E a palavra que é veiculada, hoje em dia, acicata muito esse instinto primário do agredir a diferença.
As redes sociais aceleraram este processo, promovendo uma cultura de ódio e truculência permanente, incendiando o espaço público?
As redes sociais não são um local de palavra, enquanto pensamento e produção de um conteúdo ou de uma ideia, são um local de emoção, mas falo de um tipo de emoção tribal em que estamos todos fechados em pequenos núcleos. Dizer que «Isto não é o Bangladesh» é utilizar a palavra no seu pior sentido. Com um lápis pode-se escrever um soneto ou arrancar um olho. Há quem opte por arrancar olhos com as palavras. E as redes sociais são espaços onde isso pode acontecer, no bolso de cada um. O que é grave.
O que acaba de descrever é o espelho de um sistema educativo em crise?
Registou-se um desinvestimento no sistema de ensino e seguiu-se um caminho de desincentivo e desautorização do trabalho dos professores. O que se nota é que o crescimento destes extremismos populistas tem na sua raiz motivos educacionais e de cultura. É uma ausência da escola a montante. Lá na nascente precisávamos que os governos tivessem prestado mais atenção ao papel estrutural, fundacional e fundamental da escola na sociedade. Mas é preciso não esquecer que os políticos que temos hoje já são fruto de um desinvestimento na educação. E o efeito que hoje produzem essas palavras são também um menosprezo no investimento em cultura, e coloca em causa um povo culto, educado e esclarecido. Aliás, tivemos há dias, na Assembleia da República, o chumbo da descida do IVA nos livros, o que é revelador da importância que se dá à matéria publicada.
Presidiu até há poucos dias à assembleia geral da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA). Paul McCartney lançou uma faixa silenciosa sob a forma de protesto contra a lei do governo britânico que enfraquece os direitos de autor. Enquanto personalidade muito vocal na defesa da cultura e dos artistas, como antecipa o impacto da Inteligência Artificial (IA) para os autores?
É uma questão bastante complicada. Tivemos um debate na SPA há cerca de 15 dias. A IA é um instrumento que é preciso regular, como se regula, por exemplo, o espaço aéreo. Porquê? Porque é um espaço comum, onde estamos todos, e representa um sério perigo se não for regulado. Mas, na minha opinião, a máquina não substitui a criatividade humana. Por muito sofisticada que seja, a máquina não cria, a máquina imita. E ao imitar, rouba. E eu, enquanto autor, tenho de alertar que a IA e o algoritmo vão buscar às nossas obras – que fazemos na dor e no silêncio da nossa casa – para alimentar um papaguear que aparenta ser música e poesia, mas não é.
Tem concertos agendados para Lisboa e Porto no próximo mês de janeiro. Quase a completar 65 anos, o que é que ainda lhe falta fazer e que ainda não foi feito?
Tudo!
A CARA DA NOTÍCIA
Palavras e canções intemporais
Pedro Abrunhosa praticamente dispensa apresentações, sendo um dos artistas nacionais que há mais anos, ininterruptamente, se encontra no ativo, lançando discos e promovendo concertos. Tem tido ao longo destas três décadas, enquanto figura pública, acesa intervenção cívica sobre temáticas diversas, desde a dimensão humana, política, social e cultural, na cidade do Porto e no país. A comemorar 30 anos do lançamento do seu primeiro disco, «Viagens», Abrunhosa deu à estampa, com a chancela da Contraponto Editora, os livros «Cancioneiro» e «Vem abrir a porta à noite». São letras e partituras de canções e palavras intemporais que prometem sobreviver à erosão do tempo.