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António Marujo, jornalista Os desafios do Papa americano

26-05-2025

Especialista em assuntos religiosos,  António Marujo esteve em Roma a acompanhar o conclave que elegeu o Cardeal Robert Prevost e antecipa o que pode ser o pontificado do Papa Leão XIV.

Que perfil se pode traçar do novo Papa, o Cardeal Robert Prevost, eleito no conclave no passado dia 8 de maio?

Em Roma, onde estive durante e após o conclave, das pessoas que ouvi e dos testemunhos recolhidos, posso afirmar que é uma boa síntese dizer que podemos esperar uma moderada continuidade face ao Papa Francisco. Nos primeiros 15 dias de pontificado percebeu-se que segue na esteira do que foi feito pelo seu antecessor, no que diz respeito à intervenção da Igreja Católica na praça pública, nos grandes temas sociais, nos grandes problemas e nas tragédias da humanidade. Por exemplo, o tema da paz tem sido sistemático em todas as suas intervenções, tendo mesmo repetido a palavra «paz» por nove vezes quando apareceu, pela primeira vez, à varanda na Praça de São Pedro. Nesta dimensão e também noutras, acredito que o Papa Leão XIV está completamente alinhado com o Papa Francisco.

O Cardeal Prevost nasceu em Chicago. Em que medida é que as suas características pessoais e origens podem influenciar o comportamento?

O seu temperamento pode influenciar alguns aspetos. Desde logo, na dimensão geopolítica. Creio que o facto de ser americano pode tornar-se num fator positivo. Já não é um Papa que «veio do fim do mundo», como disse Francisco de si próprio. Ele é americano, fala inglês, apesar de ter passado muito tempo fora. Acredito que pode contribuir para influenciar o rumo da Igreja Católica nos Estados Unidos, muito dividida e fraturada pelas questões do aborto e da moral sexual. Para além disso, pode falar olhos nos olhos com a administração Trump. O seu modo de fazer as coisas também me parece que é diferente, face a Francisco, pelo facto de não ser tão expansivo e assertivo. A sua timidez e discrição pode levar a que tenha uma maior capacidade para influir e persuadir pela força dos argumentos.

O contexto bélico, nomeadamente na Ucrânia e no Médio Oriente, pode marcar o primeiro ano e fazer deste um início de pontificado orientado para a paz e de intensificação dos esforços diplomáticos?

A máquina diplomática do Vaticano há muito que está treinada e oleada para desenvolver esforços diplomáticos. No pontificado do Papa Francisco já se registaram vários avanços. Foi nesse período que foi desbloqueado o relacionamento entre os Estados Unidos e Cuba, após 60 anos, bem como concretizadas várias trocas de prisioneiros entre a Ucrânia e a Rússia. Também a viagem do Papa à República Centro Africana, em que se encontrou com a comunidade muçulmana cercada militarmente por grupos de cristãos armados, fez reduzir a intensidade do conflito e da guerra civil nesse país. Com o Papa Leão XIV, tendo em conta a personalidade mais discreta, acredito que possa ser possível estabelecer pontes que no passado não foram feitas, abrindo novas vias de diálogo e de presença diplomática. Admito que o Vaticano possa vir a ser um local para a mediação das negociações entre a Rússia e a Ucrânia. Mas isso só acontecerá se a igreja ortodoxa russa o permitir. Infelizmente, e de forma inacreditável, desde o primeiro momento do conflito, a Igreja ortodoxa russa tem estado ao lado de Putin no apoio à invasão e na benção dos soldados que vão combater para o campo de batalha, o que é a antítese do que uma igreja cristã deve defender. Nos dias de hoje, e no que aos conflitos diz respeito, o sumo pontífice apenas pode propor o diálogo, avançar com argumentos de aproximação, indicar personalidades para a mediação e esperar que as partes sejam razoáveis e façam cedências, de parte a parte.

Os analistas antecipam que Leão XIV terá uma lógica reformista e uma abordagem teológica mais prudente e tradicional relativamente ao seu antecessor. Subscreve?

Será, uma vez mais, uma questão de estilo e atitude. De mais ou menos assertividade na forma de abordagem das questões. Admito que enquanto o Papa Francisco queria acelerar reformas, o Papa Leão XIV opte por uma atitude mais prudente e moderada. Apesar disso, dos primeiros sinais que vamos recolhendo, creio que, porventura, não terá uma atitude muito diferente da do Papa Francisco. Dou vários exemplos: na homossexualidade, Francisco defendeu um acolhimento diferente, mas não mudou a doutrina. Nas mulheres, Francisco abriu as portas a lugares de governo e de gestão, mesmo na Cúria e no Vaticano, mas não alterou a doutrina quanto aos lugares de ordenação presbiteral. Em suma, penso que os objetivos serão semelhantes, mas as estratégias para que sejam alcançados poderão ser diferentes.

Não espera, então, pelo menos nestes primeiros anos, reformas extraordinárias?

Nestes primeiros dias do seu pontificado Leão XIV falou muito pouco para dentro da Igreja. Há diversas questões que aguardam uma decisão dele. Por exemplo, será com ele que não vamos ver o celibato obrigatório dos padres? Não sei. Talvez não. Será com ele que vamos ver a abertura da Igreja Católica à ordenação de mulheres?  Talvez não. Mas acredito que possam ser dados passos para, num futuro, abordar com frontalidade estas questões. Tudo dependerá das dinâmicas que ele imprima. Para além disso, diz-se que é uma pessoa com uma extraordinária capacidade de escuta, o que pode jogar a seu favor.  A sua experiência pode pesar: é cidadão americano, mas viveu muito tempo na América Latina e na Europa. Mas acho que o lugar forja as pessoas. Francisco era muito diferente enquanto arcebispo de Buenos Aires e foi o que foi quando chegou a Papa.

A escolha do nome do Papa nunca é por acaso. Francisco foi por causa de São Francisco de Assis e Leão foi o sumo pontífice que se celebrizou pela encíclica «Rerum Novarum», que falava da condição dos operários, na altura da revolução industrial, no século XIX. Admite que o foco de Leão XIV seja nas transformações operadas no mundo do trabalho pela Inteligência Artificial?

Deixe-me só corrigi-lo num aspeto. O nome do Papa Francisco foi fruto do acaso. Recordo que o Cardeal Bergoglio assim que foi eleito, recebeu o cumprimento por parte de um outro cardeal que lhe disse: «Não se esqueça dos pobres». E assim surgiu o nome Francisco. Já no caso do Cardeal Prevost é claro que ao escolher o nome Leão já tinha feito uma reflexão prévia.  Respondendo à questão que me coloca, o Papa Leão XIV  na missa com os cardeais, na dia seguinte à eleição, fez uma referência à questão da Inteligência Artificial no âmbito das grandes questões sociais do nosso mundo, nomeadamente o modo como vai substituir-se ao trabalho humano. E, naturalmente, as implicações profundíssimas em termos laborais, éticos, sociais, humanos, económicos e mentais. Como se pagam salários às pessoas desocupadas e como nos passamos a organizar enquanto sociedade? Acredito que o seu contributo será importante nesta área, ao chamar a atenção para a existência de uma nova revolução industrial em marcha, desta vez de natureza tecnológica, e de caráter profundo. Ainda para mais tendo ele uma formação matemática. Bate tudo certo.

As matérias relacionadas com a ecologia e as migrações também vão merecer especial atenção?

Certamente. Ainda como cardeal pronunciou-se contra a política de imigração da administração Trump. Sobre o clima, na missa de pontificado, a 18 de maio, referiu-se claramente a esse tema com uma citação eloquente: «No nosso tempo ainda vemos demasiada discórdia e demasiadas feridas causadas pelo ódio, a violência, os preconceitos, o medo do diferente, por um paradigma económico que explora os recursos da Terra e marginaliza os mais pobres.» Ou seja, nesta frase o Papa relaciona o paradigma económico (a tal «economia que mata», nas palavras do Papa Francisco) com outro paradigma assente nos discursos populistas, de ódio e de medo. A questão climática – assente no triangulo da justiça social, da economia e do impacto dos mais pobres –  sempre esteve muito presente no pontificado do Papa Francisco, nomeadamente desde a encíclica «Laudato Si», e percebe-se que é agora recuperada nos primeiros discursos do Papa Leão XIV.

A primeira viagem do Papa Francisco fora de Roma foi a Lampedusa. Que continentes serão privilegiados nas deslocações do novo pontífice?

Ásia e África foram dois continentes para os quais o Papa Francisco orientou muito a agulha durante o seu pontificado. Aliás, as próximas Jornadas Mundiais da Juventude, em 2027, serão na Coreia do Sul. O que fará com que as atenções mediáticas se concentrem no continente asiático. O Papa Leão terá forçosamente de olhar para Ásia e África porque são os dois continentes onde o catolicismo está em expansão e também há muitos casos onde existe perseguição religiosa, tambem de cristãos, no caso de Myanmar, a índia, etc. Lembro-me que uma das últimas viagens que o Papa Francisco fez foi à Mongólia, onde há uma comunidade de...1400 católicos. Um número diminuto para uma viagem tão longa, mas que ainda assim, e já com dificuldades físicas, ele não quis deixar de fazer. Acredito que o Papa Leão XIV terá estas realidades em consideração, até porque, por ser superior geral dos agostinianos, já visitou os 50 países onde eles estão presentes, ou seja, todos os continentes do mundo.

Os seus 69 anos levam a acreditar que este pode ser um pontificado mais ou menos longo. Tem alguma inclinação sobre qual pode ser a sua primeira visita oficial?

Ainda não está anunciada, mas a primeira viagem deverá ser à Turquia Tudo leva a crer que assim será, para assinalar os 1700 anos do Concílio de Niceia, que definiu o credo cristão.

Portugal teve, neste recente conclave, quatro cardeais eleitores. Um deles, D. José Tolentino Mendonça, é o prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação, na Cúria Romana. Qual será o papel da Igreja Católica portuguesa com o novo líder do Vaticano?

A Igreja Católica portuguesa no terreno é fragil, pobre teologicamente e com muitas mudanças por fazer. O facto de termos quatro cardeais eleitores não significa que Portugal seja um país importantíssimo junto do Vaticano. As escolhas destes cardeais aconteceram fruto de vários processos e circunstâncias.

Segundo alguma imprensa italiana, D. José Tolentino  Mendonça esteve na lista dos possíveis papas, elogiando-se a sua densidade intelectual. O cardeal nascido na Madeira é o mais cotado dos portugueses no Vaticano?

Sem dúvida. Isso é um mérito que lhe pertence. Mas sinceramente nunca acreditei que um cardeal português chegasse a Papa.

 

A CARA DA NOTÍCIA

Diretor do jornal digital «7Margens»

António Marujo nasceu em Águeda, em 1961. É licenciado em Comunicação Social e jornalista desde 1985. É diretor do jornal digital «7Margens» e comentador da RTP para assuntos de religião. Trabalhou nas redações do «Expresso», «Revista Cáritas» e «Diário de Lisboa». Colaborou nos programas «Toda a gente é pessoa» (Antena 1) e «Setenta Vezes Sete» (RTP). Em setembro de 1989 integrou o núcleo fundador do jornal “Público”, onde esteve até janeiro de 2013, sendo responsável pela informação religiosa. Venceu o Prémio Europeu de Jornalismo Religioso na imprensa não confessional (Conferência das Igrejas Europeias e Fundação Templeton) em 1995 e 2006. Publicou, entre outros, «Papa Francisco – A Revolução Imparável», em coautoria com Joaquim Franco, «Lugares do Infinito», «A Lista do Padre Carreira», «Deus Vem a Público», «Diálogos com Deus em Fundo» e «Vidas de Deus na Terra dos Homens». Foi distinguido com o Prémio Gazeta na categoria de imprensa com a reportagem "A caixa de correio de Nossa Senhora", publicada nas edições de 4 de janeiro e 1 de fevereiro de 2020, do semanário «Expresso».

Nuno Dias da Silva
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