A partir de Washington, onde leciona este ano na Universidade de Georgetown, o historiador Bruno Cardoso Reis faz o balanço dos 100 dias de Trump na Casa Branca e o seu impacto para o mundo.
Donald Trump completou no início de maio 100 dias na Casa Branca. No essencial, a preocupação destes primeiros meses da sua administração baseou-se em cumprir tudo o que foi prometido ao eleitorado que o elegeu?
Trump não se apresentou com um programa convencional. Tinha uma espécie de programa alternativo baseado nos institutos de investigação privados (como o Heritage Fundation, um “think tank” conservador) que existem nos Estados Unidos e que são alinhados com as suas ideias. Mas as grandes prioridades foram todas sinalizadas durante a campanha, nomeadamente uma dura política de imigração e a imposição de tarifas comerciais. E caiu por terra a ideia de que Trump anunciava muita coisa, por mera retórica populista, mas chegando ao poder nada era concretizado. Puro engano. Neste seu segundo mandato, ele já cumpriu muito do que prometeu. Estava mais preparado e tinha o Partido Republicano muito mais na mão.
A chamada “guerra das tarifas” foi o ponto alto destes primeiros meses, tendo 2 de abril sido declarado o “Dia da Libertação”. Acredita que Trump ganhará a guerra comercial ou, como já se começa a ver, terá sido uma entrada de leão e uma saída de sendeiro?
A grande certeza relativamente a Trump é a sua permanente incerteza. Mas há algo que já sabemos: Trump reage aos mercados, às bolsas, às obrigações, à pressão dos pequenos, médios e grandes empresários e, não menos importante, à descida da sua taxa de popularidade. O défice comercial dos Estados Unidos é um problema que não é de hoje e o presidente americano defende que o seu país deve vender mais do que compra. Só que a esmagadora maioria dos americanos não acha boa ideia pagar mais caro e abrir uma guerra comercial com aliados tradicionais, como o Canadá ou a Europa. Em suma, perante todos estes fatores Trump tem procurado calibrar a sua reação. O caso mais flagrante foi a China, em que as tarifas passaram de 145 por cento para...30 por cento. Apesar disso, Trump sabe que a economia norte-americana, por ser muito dinâmica e representar praticamente um quarto da economia mundial, poderá amortecer o impacto de uma subida de preços nos consumidores.
Se estas medidas continuarem a mexer no bolso dos americanos e se existir reflexo negativo na popularidade do presidente, Trump pode fazer marcha atrás?
Nunca um presidente foi tão impopular nos primeiros 100 dias, à exceção do próprio Donald Trump no seu primeiro mandato. Na altura em que falamos a percentagem de rejeição é de 51/52 por cento. Acho que Trump valoriza muito o índice de popularidade, em especial junto do seu núcleo duro. Se os números muito negativos aumentarem, admito um recuo. Mas isso também dependerá da reação do seu eleitorado.
Este segundo mandato marcou, definitivamente, o virar de costas à Europa, com a rutura do euroatlantismo. A prioridade centra-se agora na China e nos países árabes?
A viragem nacionalista e populista no Partido Republicano tem condições para durar, mesmo depois da saída de Trump. Há muitos líderes e dirigentes jovens, como o vice-presidente JD Vance e o secretário de Estado Marco Rubio, que apostaram nesta viragem. O Partido Republicano, que historicamente confiava na ligação com a Europa e na própria NATO, mudou de atitude. Trump não esconde que tem uma grande antipatia face à Europa. E é neste contexto de polarização extrema que é preciso ver o que se pode salvar quando estão em causa valores como a economia e a segurança. Presentemente, os americanos estão mais focados na Ásia e no Pacífico, mas não se podem esquecer que para conseguirem uma contenção eficaz da China, é preciso ter massa crítica. Por isso, deviam somar aliados seguros, como são os europeus.
Está a dar-se prioridade aos interesses comerciais e aos negócios particulares, em detrimento do empenho diplomático e das alianças?
Os interlocutores ideais para Trump são os líderes dos países do Golfo e de outros regimes autocráticos daquela região. Não foi por acaso que a sua primeira viagem planeada tenha sido ao Golfo Pérsico. Ele depreza os líderes das democracias ocidentais, cheias de pesos e contrapesos, com sistemas multilaterais, em que muitos negócios não se podem fazer, simplesmente porque são ilegais. Para além disso, Trump não gosta de peritos e especialistas, que no fundo lhe criam problemas e apresentam factos inconvenientes em momentos que ele considera que deve prosseguir com algum objetivo. Ele despreza a diplomacia convencional e institucional, preferindo a diplomacia de cimeiras e muito personalizada, baseada em encontros diretos com os seus homólogos. Para ele tudo é imagem, comunicação e aparecer bem nos ecrãs, difundindo “slogans” com impacto. As grandes ideias e as grandes políticas ficam num plano secundário.
Sobre o conflito na Ucrânia, Trump prometeu em campanha que o terminaria em 24 horas...
Trump é um grande vendedor. Para ele os factos só atrapalham a forma como procura «vender» a sua verdade. Ele só tinha era de aumentar a pressão sobre a Rússia. Ao invés, só tem feito pressão sobre o lado mais fraco, a Ucrânia. Por seu turno, Putin não tem qualquer incentivo para negociar de boa fé. Ele que quer que, no máximo, a Ucrânia fosse um Estado satélite russo, perdendo, na prática, toda a sua independência. Tudo isto impede que se chegue a um acordo entre os dois beligerantes. Para além do mais, diz-nos a história que a emergência de uma potência como a China e o retraimento de uma potência tradicionalmente dominante, caso dos Estados Unidos, são fatores propícios a que surjam mais conflitos armados.
Muito se tem falado da hipótese de Trump fazer um terceiro mandato, algo que a Constituição não prevê. Qual é o truque na manga?
Para o núcleo duro dos apoiantes de Trump as regras não se aplicam e creio que no caso do presidente ele vai testar todos os limites e as linhas vermelhas neste mandato. Participei num evento no fim de semana passado, em Washington, em que esteve Steve Bannon, e em que o antigo conselheiro de Trump e ideólogo do “Make American Great Again” (MAGA) disse que o presidente devia fazer mais um mandato e que havia forma de o fazer, mesmo contornando a 22.ª emenda da Constituição que foi introduzida após a II Guerra Mundial e que diz expressamente que nenhuma pessoa pode ser eleita por mais do que duas vezes para presidente. Bannon não quis alongar-se, mas admitiu que há formas de o contornar. Não creio que seja provável, até conhecendo este país e o sistema de pesos e contrapesos que existe. Mas caso acontecesse, obrigaria a uma transformação da cultura política americana, desencadeando uma guerra judicial.
Um dos alvos de Trump têm sido as universidades de elite, cortando-lhes o financiamento. Sob o pretexto de atacar o “wokismo” e o antisemitismo, o presidente quer na verdade controlar o que se ensina e se investiga nas universidades?
Parece bastante claro que é isso. Usando a arma do financiamento, o governo procura condicionar os temas que são tratados, os professores que são contratados, etc. Acontece que as universidades são muito ricas e têm-se juntado numa aliança, angariando dinheiro para se defender, para além dos processos judiciais conjuntos. A Universidade de Columbia teve 400 milhões de dólares congelados, enquanto a Universidade de Harvard (a mais próspera) deixou de receber um financiamento de 9 mil milhões de dólares. Mas é preciso que se diga que as universidades americanas têm alguns problemas de diversidade social e ideológicos. Em muitos casos, 90 dos professores das universidades de elite são democratas ou independentes. Só uma pequena parcela é afeta aos republicanos. Para além disso, os cursos são escandalosamente caros. São praticadas propinas de 70 a 80 mil dólares por ano. O que torna muito dispendioso tirar um curso. Mas não queria deixar de abordar o lado bizarro da questão: este anti-intelectualismo é outra dimensão do populismo. Para um governo que quer fazer da América grande outra vez, colocar em causa as universidades – fontes de prestígio, inovação e influência em todo o mundo – não parece ser uma política muito inteligente.
Acredita que a Europa poderá vir a ser beneficiada com o êxodo de professores e investigadores dos Estados Unidos?
Francamente não acho que seja muito realista. Em particular no caso de Portugal. Mas é possível desviar estudantes. Certamente que as mais prestigiadas universidades europeias vão beneficiar, à semelhança de outras universidades, no Canadá, em Singapura, etc. É preciso ter muito dinheiro e uma capacidade extraordinária de contratação e isso não está ao alcance de todos os paises.
A CARA DA NOTÍCIA
Professor convidado na Universidade de Georgetown
Bruno Cardoso Reis nasceu em Tomar, a 15 de janeiro de 1973. Doutor em War Studies pelo King’s College e mestre em História Contemporânea pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi subdiretor do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE-IUL, onde dá aulas e dirige o Doutoramento em História e Estudos de Segurança e Defesa, em parceria com a Academia Militar. Foi adjunto do ministro da Defesa Nacional (2019-2022). Professor convidado do Instituto de Estudos Políticos da UCP, e no ano letivo 2024-25 é professor convidado da Fundação Luso-Americana Para o Desenvolvimento (FLAD) na Universidade de Georgetown, em Washington. Uma instituição privada jesuíta, fundada em 1789. Tem vários artigos e livros publicados, entre eles o ensaio «Pode Portugal ter uma Estratégia?» (2019) da Fundação Francisco Manuel dos Santos. É comentador de assuntos internacionais na Rádio Observador e na SIC-Notícias.