A centralização dos direitos televisivos, a cultura organizacional e a “performance” financeira dos três “grandes”, sem esquecer, a antevisão do campeonato nacional de futebol, que se inicia a 8 de agosto. Tópicos para uma conversa, a toda a largura do campo, com Luís Vilar, professor universitário e comentador da CNN Portugal.
A Liga Portugal arranca a 8 de agosto. O Sporting surge como o bicampeão em título, o Benfica ainda com muitas indefinições no plantel e um FC Porto em reestruturação. Quais são as suas expetativas?
A diferença de orçamentos faz com que os chamados três “grandes” sejam, invariavelmente, os três primeiros no final do campeonato. Só um super Sporting de Braga poderá ter alguma chance de conseguir ficar no pódio. Os ordenados pagos pelos clubes são uma variável muito relacionada com o desempenho classificativo. O Benfica paga 120 milhões de euros, o Sporting 90 milhões, o FC Porto 80 milhões, enquanto o Braga se fica pelos…30 milhões. Depois, temos o Vitória Sport Clube com 17 milhões, o Famalicão e o Santa Clara, com valores entre os 10 e os 12 milhões. Para baixo é tudo mais homogéneo, entre os 4 e os 8 milhões, estão mais de 50 por cento das equipas, o que explica que o campeonato seja muito nivelado num “cluster” abaixo. E são estes que, por norma, lutam para evitar a despromoção.
Na corrida a três há algum que parte com maior favoritismo?
Penso que o Sporting parte com alguma vantagem face ao Benfica, apesar de que para ser melhor do que a concorrência tem de derrubar alguns obstáculos. Explico: o Sporting tem o desafio de conceber uma equipa sem Gyokeres e agora também sem Rúben Amorim, que arrancou como treinador a passada temporada. Para além disso, esta equipa já terá a identidade e o modelo do treinador, Rui Borges. Por seu turno, o Benfica está a operar uma transformação no seu plantel, fruto da pressão eleitoral, e tem o desafio de fazer pô-lo a render o mais depressa possível. O que não é fácil.
Finalmente, o FC Porto não é campeão desde a temporada 2021/22. Será o clube mais pressionado?
O FC Porto tem dois desafios gigantescos: a sua refundação cultural e a estabilização financeira. Mas vai demorar a acertar. Vão ser necessárias quatro épocas para estabilizar e oito janelas de mercado. Para além disso, a escolha de Francesco Farioli para treinador tem o dedo do diretor desportivo Zubizarreta, que aposta muito na nova geração de treinadores de matriz latina, irreverente na metodologia de treino e na conceção de jogo.
A Liga portuguesa ocupa uma posição periférica, em termos de influência e capacidade de gerar receitas, no quadro dos campeonatos europeus. Oscilamos entre o 6.º e o 7.º lugar, a par com as congéneres neerlandesa e belga. Este défice de competitividade deve-se ao fato de esta ser uma liga muito assente na exportação de talentos, nacionais e estrangeiros?
Se o critério de mensuração for o coeficiente da UEFA, estamos abaixo dos Países Baixos e acima da Bélgica. Mas em dois anos tudo pode mudar. Vai depender da “performance” das nossas equipas que na temporada transata até foi de assinalar. Mas há outros indicadores preocupantes: A Bundesliga 2 e o Championship (liga 2 inglesa) estão à nossa frente em número de adeptos nos estádios. São campeonatos com uma competitividade incrível, especialmente no caso germânico, em que muitos dos históricos clubes alemães estão a jogar na segunda divisão. Mas vistas bem as coisas isto não é propriamente um problema. O que é fundamental é perceber o papel estratégico da Liga portuguesa. E penso que Domingos Soares de Oliveira, ex-administrador da SAD do Benfica, percebeu isto muito bem. O nosso campeonato está inserido numa cadeia de valor e digamos que o nosso lugar natural é logo atrás das chamadas “big five” (Inglaterra, Alemanha, Espanha, Itália e França). Conseguimos recrutar novos talentos na América Latina, e como “gate keeping” na Europa, vendemos para alguns dos principais clubes das cinco principais ligas. Com esta receita acrescentada, os clubes portugueses foram mestres em somar esta receita extra (as mais valias) ao encaixe tradicional do modelo de negócio: “matchday”, “broadcasting” e o “comercial”. O reverso da medalha é que os clubes portugueses ficam muito dependentes da geração de receitas provenientes das transferências para pagarem os ordenados que hoje em dia são pagos.
Por isso é tão importante o acesso à Liga dos Campeões…
Se Sporting, Benfica e FC Porto deixarem de ter acesso à Liga dos Campeões vão vender os seus melhores ativos. Disso ninguém duvide. Como o Benfica sempre vai gerar mais receitas do que os outros, o FC Porto está a apontar ao Sporting e a mexer o seu jogo de influências para fragilizar o rival de Alvalade e, deste modo, facilitar o seu acesso a um lugar, direto ou via “playoff”, à “Champions” na próxima temporada.
Os principais clubes nacionais enfrentam grande pressão financeira, nomeadamente ao nível das massas salariais que suportam. Os três “grandes” vivem acima das suas possibilidades e a “Champions” é a boia de salvação, sob pena de naufragarem?
Não é inteiramente verdade que vivam acima das suas possibilidades. Benfica e Sporting, num intervalo de 3/4 anos, geraram resultados positivos ou neutros. Os dois clubes de Lisboa até têm capitais próprios positivos. O que não acontece com o FC Porto. Mas é claro que os nossos clubes dependem das receitas da “Champions” para sobreviverem. Porquê? Porque assumiram custos, contando que essa receita está lá. Os três “grandes” – e o Braga também já fez isto - assumem que com as verbas da “Champions” e as receitas das transferências podem pagar mais talento, influenciando a estrutura de custos.
E se o acesso à “Champions” for falhado?
Se isso acontecer, ficam obrigados a libertar talento rapidamente ou então vão assumir a dívida, fazendo crescer o passivo, correndo o risco de entrar em falência técnica. Só neste ponto é que estarão a viver acima das suas possibilidades.
Ganhar é a única palavra que praticamente todas as massas associativas conhecem. Contudo, parece existir uma nova mentalidade a emergir. Para além de vitórias, os adeptos já começam a exigir contas equilibradas e transparentes?
Essa é uma mudança muito interessante. Hoje em dia, os sócios já não querem ganhar a qualquer custo. Mais do que as vitórias querem ver o legado do seu clube representado dentro de campo. Mais do que o equilíbrio financeiro, exigem que a sua equipa respeite e personifique o legado cultural, institucional e de tradição que o clube construiu ao longo dos anos. É o património emocional que não deve ser beliscado. Os benfiquistas querem um clube a jogar «à Benfica», recuando até à década de 60, com Eusébio. Os sportinguistas não abdicam de um clube eclético, seguindo a esteira do presidente João Rocha. Finalmente, o FC Porto está à procura de si mesmo, indeciso entre romper ou não com décadas de um legado assente na raça e no «contra tudo e contra todos». Perante este contexto, é fundamental que os treinadores que chegam – especialmente se forem estrangeiros – entendam a cultura, a história e as expetativas dos associados e dos adeptos. Se um treinador não perceber este enquadramento, assim que os maus resultados acontecerem vai ver os primeiros lenços brancos. O que entender, mesmo fazendo maus resultados, terá sempre alguma margem de manobra e tolerância por parte dos adeptos.
Já há SAD’s de clubes portugueses detidas, parcial ou totalmente, por capital estrangeiro. Admite que este cenário possa vir a ser uma realidade nos três maiores emblemas nacionais?
Isso já está a acontecer no mundo inteiro. A realidade portuguesa tem particularidades, mas não é assim tão diferente. Mas há alguns obstáculos. Primeiro: para que isso aconteça, dois terços dos sócios têm de aprovar em assembleia geral do clube a venda do capital da sua SAD a um detentor privado. Segundo: os presidentes dos três “grandes” lideram os clubes porque o seu ponto forte é controlar a multidão. O ponto forte deles não é terem dinheiro ou capacidade de gestão. Frederico Varandas, André Villas-Boas e Rui Costa não tinham, antes de chegarem às cadeiras de líderes, nem “skills” de gestão, nem de capital. Perante isto, faço a seguinte pergunta: como é que algum destes dirigentes vai promover uma mudança no modelo de governança do seu clube e da sua SAD que os prejudique a eles próprios?
Pelo que acaba de dizer, então os três “grandes”, num futuro mais ou menos próximo, serão irredutíveis a qualquer investida de capital estrangeiro?
Só numa situação é que isso pode acontecer: quando um deles estiver tão afastado dos seus rivais e necessite de injetar capital para reconstruir a SAD. Ou seja, a acontecer será por via da necessidade financeira.
Gestão, liderança e comunicação para o exterior. São estes os pilares para o sucesso desportivo e em que deve assentar o novo modelo de governança dos clubes de futebol nacionais?
Na minha perspetiva, a cultura e o propósito devem ser o máximo e estão no topo das prioridades. São as regras (de comportamento e de valores) tácitas existentes entre os membros de uma organização e que acabam por fundamentar um propósito comum. Os clubes têm de ter um propósito muito claro, que depois emana numa visão, seguindo posteriormente para uma estratégia de gestão, para um modelo de liderança e daí decorrente um modelo de comunicação. Construir uma geração de emoções positivas e um capital emocional para os adeptos e associados é crucial, fazendo passar o sentimento que «aqui, nós ganhamos.» O problema é que o modelo de governança seguido pelos três “grandes” é associativo, promovendo a eleição do presidente por via de fatores populares e demagógicos, e não por competências de gestão e racional financeiro. Para reverter este círculo vicioso negativo, é preciso um choque e ele só acontecerá quando um dos três “grandes” estiver à beira da falência.
A centralização dos direitos televisivos terá de acontecer até 2028. Benfica, Sporting e FC Porto resistem. Se não houver acordo, o governo terá de intervir. Com que custos para a sua popularidade?
Essa é a questão: qual é o governo que se vai atravessar neste tema e tomar uma decisão que custe a sua popularidade junto da opinião pública? Só espero que haja coragem. Mas vamos aos factos: o problema não é a centralização. O problema é a chave da divisão das receitas. Ou seja, é preciso definir as variáveis que entram para a divisão da receita. As audiências, o número de adeptos, a “performance”, etc. Em Inglaterra, é 50 por cento igual para todos e 25 por cento com base nas audiências e 25 por cento com base na “performance”. Em síntese, isto aplicado em Portugal, permitiria mitigar fortemente o desequilíbrio existente entre os clubes maiores e os de menor dimensão. O Benfica sente-se lesado por ser o clube que mais adeptos arrasta e que tem mais popularidade no país. Mas o Benfica, como os outros, terá de cumprir. Veremos o que acontecerá na assembleia geral da Liga de Clubes. Mas é preciso não esquecer que os clubes pequenos, todos unidos, têm mais poder e sabem que vão ganhar mais dinheiro, enquanto os três “grandes” vão sair prejudicados com a futura centralização.
Está em marcha a revolta dos pequenos?
A centralização não é somente um movimento económico, é um movimento essencialmente político, visando retirar poder de influência a Benfica, Sporting e FC Porto, porque eles têm 99 por cento da receita gerada no futebol português, permitindo-lhes contratar jogadores, fazer pressão nos “media”, etc. Para finalizar, e é algo que não se tem dito, mas com ou sem centralização dos direitos, os clubes “grandes” vão ganhar menos. De uma forma ou de outra, os direitos televisivos em Portugal vão valer muito menos e isto explica-se pelo facto de as três operadoras já estarem dentro do capital social da Sport TV, o que não acontecia quando os anteriores contratos foram assinados.
O futebol é uma das maiores indústrias de entretenimento do mundo. O recente mundial de clubes, disputado em junho, gerou muitas críticas por sobrecarregar os já de si preenchidos calendários. Estão a matar a galinha dos ovos de ouro?
Estão a “matar” os atletas, mas estão a gerar mais dinheiro. Em última instância, só quando os adeptos se zangarem seriamente com o produto que estão a consumir é que os responsáveis vão perceber o que estão a fazer. Por algum motivo o mundial de clubes foi transmitido em aberto, numa plataforma de “streaming”. Se fosse a pagar, quem é que pagava? A DAZN aproveitou este mundial de clubes para resolver o problema da pirataria, obrigando as pessoas a registarem-se no “site”, para assistirem aos jogos exclusivamente na aplicação. Quanto à condensação dos calendários competitivos, posso dar o exemplo do Rúben Dias que teve 6 dias de férias esta temporada. Isto não é só desumano, é ilegal do ponto de vista das leis do trabalho.
Admite como medida de força uma greve por parte dos jogadores?
É preciso saber se os jogadores estão confortáveis com esta sobrecarga. E se não estão, que medidas vão tomar. Facto indesmentível é que até à data ninguém fez greve. Provavelmente os jogadores também estão a receber parte das receitas que os seus clubes receberam. Ou seja, todos ganham, menos o adepto porque a intensidade e a qualidade média do espetáculo está a baixar.
Com esta competição, a FIFA quis marcar terreno face à hegemonia da UEFA que organiza a milionária e mediática “Champions League”?
A FIFA pensou o seguinte: «Eu mando nisto tudo, faço os calendários e só tenho o mundial de seleções de 4 em 4 anos? Então vou fazer uma competição minha». Fizeram dinheiro para eles e até geraram uma receita simpática para os clubes num mês em que os atletas até deviam estar de férias. Veja que para ganhar mais dinheiro, a UEFA alterou este ano o modelo da “Champions”, aumentando os jogos de 126 para 189. E será o que vai acontecer também em Portugal, para a Liga nacional ganhar mais dinheiro por via da centralização dos direitos, mas tal só acontecerá reformulando o quadro competitivo.
Fala-se que a fatia de leão da “sponsorização” do mundial de clubes, realizado nos Estados Unidos, veio da Arábia Saudita. A entrada em cena dos “petrodólares” faz com que a paixão tenha sido derrotada pelo dinheiro?
Tudo é uma questão de dólares. Agora é dos “petro”, mas antes vieram de outras proveniências. Já foi da Rússia, da China, etc. Mas é preciso dizer que verdadeiramente a indústria do futebol está-se borrifando para a fonte do dinheiro. Desde que todos saiam a ganhar. Sobre o chamado “sportswashing”, alguns países da Península Arábica estão a a ser acusados de utilizar o desporto como forma de mediatizar e comunicar que o seu país está na vanguarda e respeita os valores ocidentais, nomeadamente os direitos humanos. Para isto criaram o Public Investment Fund (PIF), um fundo soberano de milhões e milhões de dólares, que investe em várias áreas e que decorre da vontade do príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammad bin Salman, que tem a visão 20/30 também assente na convicção que o petróleo é um recurso escasso e também por via das práticas de sustentabilidade pode ter o seu futuro ameaçado. É nesta perspetiva que o desporto, nomeadamente o futebol, surge como um pilar estratégico, sendo a contratação de Cristiano Ronaldo o seu topo.
Disse num “podcast” em que participou que se «educarmos o povo teremos indústrias de entretenimento mais saudáveis.» Em que medida é que a educação pode ser estruturante para formar melhores gestores e atores desportivos?
Falando de uma forma abstrata, e não me centrando no futebol, o conhecimento é responsável pela evolução das práticas, sejam elas de gestão, económica, liderança ou desportivas. Quem chega ao poder, seja em que setor for, muitas vezes sente-se ameaçado por quem vem de baixo. E quem está nesse patamar inferior tem mais o apelo e a ambição para investir na formação e no conhecimento. E rapidamente é visto como uma ameaça. Isto é mais visível à medida que entramos nas sociedades subdesenvolvidas, onde não se convive bem com a inteligência e o conhecimento dos outros. Ou seja, é mais fácil controlar o poder quando há falta de acesso ao conhecimento. Era Salazar que dizia que «um povo ignorante é um povo feliz».
A indústria do futebol, sem adeptos e consumidores, não existiria. A educação deve começar por aqui?
Temos de educar os adeptos. Explicando-lhes para que é que o futebol existe. Os adeptos querem boas emoções associadas, de preferência, a vitórias, mas não tem de ser necessariamente assim. Temos de promover uma cultura de ética através do desporto. Afirmar que sempre que perdemos a culpa é dos outros, e sempre que ganhamos é por mérito nosso, é uma conceção própria de uma sociedade subdesenvolvida. Como veículo social e educacional brutal, o desporto tem de dar o exemplo.
A CARA DA NOTÍCIA
Uma carreira de prática e teoria desportiva
Luís Vilar nasceu em Lisboa, a 23 de setembro de 1982. Há cerca de uma década que é comentador de futebol na TVI/TVI24 e mais recentemente na CNN Portugal. Tem o doutoramento em Ciências do Desporto, o mestrado em Treino de Alto Rendimento e a licenciatura em Educação Física e Desporto Escolar. Enquanto desportista, jogou futebol e futsal. Atualmente, desempenha as funções de diretor executivo de educação online na Nova SBE Executive Education. Leciona vários cursos e formações, com destaque para a cadeira de «Football business and administration». Anteriormente, na Universidade Europeia dirigiu a faculdade online daquela instituição, tendo coordenado ainda a área de Desporto. Foi docente na Faculdade de Motricidade Humana e na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias.