Hélder Fráguas passou da barra dos tribunais para o tribunal num estúdio de televisão, protagonizando um programa em que já proferiu mais de 600 sentenças.
Há cerca de um ano que protagoniza, juntamente com o apresentador João Patrício, o programa «A Sentença», na TVI. Que balanço faz desta experiência, que tem registado boas audiências durante a tarde, que recria a sala de um tribunal e em que são julgados casos inspirados em factos reais? Como tem sido a “química” com o seu parceiro, João Patrício?
“A Sentença” teve início a 15 de abril de 2024. O apresentador João Patrício, igualmente com responsabilidades de direção, tinha determinados objetivos e foi sempre alcançando-os. Mais do que expetativas, creio que ele traça metas e trabalha para as atingir. Obviamente, é junto deste grande profissional de televisão que eu colho mais ensinamentos.
Em que medida é que a experiência passada, não na ficção, mas na realidade, como juiz e a sua formação e prática como advogado, é relevante para a forma como conduz o programa e fundamenta a decisão?
Tenho lidado com milhares de processos e envolvo-me profundamente nos casos em que trabalho. A consulta do processo não revela mais do que um décimo da realidade. É ao longo do julgamento que se vai conhecendo uma parte dos factos efetivamente ocorridos. A verdade completa nunca é descoberta.
Entre 1994 e 2000, o programa «O juiz Decide», emitido na SIC, já tinha sido um grande sucesso de audiências. Tem alguma justificação para a boa aceitação por parte do público de programas desta natureza?
Os casos são decididos como sempre acontece num tribunal. Um dos litigantes ganha. O outro perde. É isso que torna o programa atraente e cativa quem a ele assiste. Um conflito é resolvido com uma parte a vencer e a outra derrotada. Não há cabimento para a justiça salomónica. O próprio Salomão era contra as decisões salomónicas, que não agradam completamente a ninguém e são apresentadas como equilibradas. Ficou comprovado quando ele resolveu dar sem efeito a sua anterior deliberação. Declarou que a pantomineira era a perdedora. O consenso, uma no cravo outra na ferradura, a cedência, o pacto, o compromisso, a unanimidade, a harmonia, a transação têm o seu espaço na mediação, no julgado de paz, na negociação, na arbitragem. Mas não se adequam à “Sentença”.
Em Portugal, a precursora foi a rubrica “Juízes, Entre Nós”, com o Dr. Luís Laureano Santos. Integrava o programa “A Festa Continua”, do Júlio Isidro. Foi transmitida entre outubro de 1983 e julho de 1984, nas tardes de domingo, na RTP1. O “Juiz Decide” da década de 90 tinha como autor Paulo Coelho, que é também autor de “A Sentença”. O modelo equivale ao “Forum” italiano, “Tribunal na TV” no Brasil, “Judge Joe Brown” e “Caso Cerrado” dos Estados Unidos, “Judge Rinder”, em Inglaterra, “Na Barra do Tribunal” em Angola, “De Rijdende Rechter” dos Países Baixos, "Présumé Innocent" francês e “Richter Alexander Hold” na Alemanha, entre outros.
«Depois não se queixe» é um termo a que recorre frequentemente no programa e já é quase uma imagem de marca. Como surgiu? As pessoas que o abordam na rua repetem muitas vezes essa frase?
Era uma expressão que, muito esporadicamente, ouvi da boca do saudoso Juiz Dias, logo no meu início de carreira, curiosamente com aquele gesto que agora emprego. Que me recorde, nunca a empreguei enquanto fui Juiz no ativo. Lembrei-me de utilizá-la no primeiro programa e, depois, tornou-se um hábito. Quando, numa ou duas ocasiões, não proferi essas palavras, questionaram-me porque não o havia feito. Frequentemente, sou abordado e é assim que me cumprimentam, antes de dizerem bom dia, boa tarde ou boa noite, dizem-me: «Depois não se queixe». Isso cria logo uma empatia grande.
Das centenas de programas «A Sentença» já transmitidos, consegue escolher o caso que lhe tenha tocado mais ou que lhe tenha levado mais tempo de reflexão para decidir?
Já foram transmitidos mais de 600 casos. O processo mais marcante denomina-se “Beleza a quanto obrigas”, que corresponde ao episódio 158, transmitido a 10 de setembro de 2024. Uma jovem tinha o sonho de participar no Big Brother. Gastou 6 600 euros em operações plásticas, na esperança de que a sua nova aparência lhe garantisse a seleção para o programa. Omitiu ao médico que o filho dela aguardava por uma operação num hospital público, numa longa de lista de espera. Aquela pequena fortuna era mais do que suficiente para que a criança fosse imediatamente intervencionada numa unidade privada. Terminadas as várias operações plásticas, a jovem mulher candidatou-se, mas não foi uma das escolhidas para o “reality show”. Compreendeu que a aparência não era factor levado em consideração. Então, exigiu que o médico lhe devolvesse o dinheiro que tinha despendido. O único argumento era o de que, desde o início, ela tinha informado a clínica de que a sua finalidade era ingressar na casa mais vigiada e o objetivo não tinha sido alcançado. O caso é inteiramente real e passou-se com um dos mais prestigiados cirurgiões plásticos lisboetas.
Vamos sair agora do tribunal televisivo. Em tese, um magistrado decide com base no Código Penal. Falando da sua experiência pessoal, em que medida é que o quadro de valores e crenças partilhado pelo juiz e, nalgumas situações, a pressão mediática podem, também, condicionar a decisão que é tomada?
Sim. O ensino académico é decisivo. Os conhecimentos científicos são adquiridos na Universidade e consolidados ao longo da formação permanente. A técnica vai-se apurando com o treino formal, a experiência e a troca de impressões com colegas. Os valores, os princípios e a informação desempenham sempre o seu papel na tarefa de aplicação da lei.
Nos últimos tempos, processos envolvendo crimes de ódio, assédio moral e violência de género chegam, cada vez mais com maior frequência, aos tribunais. Pensa que tanto juízes como advogados têm uma preparação suficientemente robusta e adequada para lidar com estas temáticas?
Em todo o mundo, em qualquer país, seja qual for o regime político, em qualquer tipo de ordem jurídica e sistema judicial, as leis dividem-se em duas categorias: o Direito Civil e o Direito Penal. Este último é também conhecido como Direito Criminal. Os casos que refere podem ter uma abordagem civil, mas também consequências a nível penal. O Direito Civil diz respeito a um litígio entre duas pessoas. O tribunal intervém para decidir qual dos dois tem razão. Por exemplo, uma senhoria pretende que o inquilino deixe a sua casa, apesar de as rendas estarem em dia, invocando o uso anormal do imóvel. O arrendatário alega que ela quer despejá-lo porque agora está lá a residir também uma namorada sua, que é estrangeira. O Direito Penal ou Criminal é relativo a violações graves das leis que estabelecem as regras básicas da vida em sociedade. O Estado atua contra a pessoa que é acusada de desrespeitar essas normas e aplica uma sanção, uma punição a quem não observa os preceitos fundamentais. É o caso de um utente que frequentemente é servido numa instituição, mas desentende-se sempre que é atendido por uma mulher, o que não ocorre quando um homem lhe presta o serviço. Em certa ocasião, agride duas funcionárias. Os casos são levados ao tribunal competente, consoante se trate de matéria civil ou criminal. Há sempre uma probabilidade de erro. Nenhum sistema é imune ao erro judiciário. A lei portuguesa dispõe de dois importantes mecanismos para reduzir a probabilidade de ocorrência de erros judiciários.
Em primeiro lugar, os casos mais sérios são decididos por tribunal coletivo. Não é apenas um único juiz que delibera. Três juízes intervêm e todos dispõem de voto com idêntico peso. Quando se resolve uma situação isoladamente, pode ser maior o risco de cometer um erro. Essa eventualidade é atenuada se atuam três pessoas em conjunto. O número de magistrados é ímpar propositadamente para obstar a um empate. Depois, admite-se o recurso para um tribunal superior, que apreciará novamente o caso se alguma das partes se mostrar insatisfeita com a decisão tomada pela primeira instância. Assim confere-se a faculdade de um eventual erro ser corrigido.
A morosidade é porventura a principal característica, e que mais penaliza o sistema judicial português, com processos a arrastarem-se anos a fio. Se estivesse na sua mão, que medidas tomaria, no imediato, para tornar a justiça no nosso país mais confiável aos olhos da opinião pública?
Em processo criminal, o que mais concorre para a morosidade é a lentidão da fase do inquérito. Nalguns casos, a delonga instala-se. De um modo geral, o julgamento e os recursos decorrem dentro dos prazos legalmente estabelecidos. É fácil pôr-lhe termo. Basta acionar o mecanismo da aceleração processual, previsto na lei. É menos utilizado do que deveria. Pede-se ao Procurador-Geral da República que ordene a prontidão. Sempre que solicitei a aceleração processual, a minha pretensão foi atendida. Posso dar dois exemplos: Uma mulher de Cascais liderava um bando dedicado a assaltos violentos à mão armada na Grande Lisboa. Ela chegou a ficar em prisão preventiva na cadeia de Tires, mas rapidamente foi libertada e foi-lhe aplicada uma pena suspensa. Entretanto, ela surgiu como ligada a uma rede de fabrico e circulação de notas falsas, o que não tinha fundamento. O processo de investigação retardava, com diligências inúteis, típica burocracia, ajudas de custo dispendiosas, manobras dilatórias, troca de correspondência, notificações dispensáveis e lentidão olímpica. Depois de aquela mesma mulher ser constituída arguida, já tinha sido interrogada duas vezes, sem justificação nenhuma. Chegado o Natal, foi notificada de que haveria um terceiro interrogatório. Ela perdeu a paciência e requereu à Procuradora-Geral da República que fosse decretada a aceleração processual. O terceiro interrogatório foi anulado e o processo foi imediatamente arquivado. Num outro caso, um menino foi vítima de maus tratos no Colégio Militar. Era filho de pai incógnito. A mãe encontrava-se na cadeia, a cumprir pena por tráfico de droga. O rapaz foi ao hospital após ser mais uma vez brutalmente espancado e o caso foi denunciado às autoridades. Os anos passaram e o processo continuava a demorar, umas vezes esquecido, outras com papelagem escusada, convocatórias desnecessárias e perda de tempo, cujo único efeito era atrasar a investigação. Os prazos legais mostravam-se largamente ultrapassados. Já crescido, o jovem invocou a aceleração processual, que foi prontamente decretada. O processo foi logo enviado para julgamento.
A CARA DA NOTÍCIA
Dos tribunais para a televisão
Helder Fráguas nasceu, em Lisboa, a 10 de fevereiro de 1966. Licenciou-se em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Advogado de formação, foi notário, docente universitário, formador da Ordem dos Advogados e membro do Conselho de Gestão do Centro de Estudos Judiciários. É juiz aposentado. É autor dos livros “Se a Justiça Falasse…” e “Sucesso nas Carreiras Jurídicas”. Helder Fráguas foi colunista do jornal “Correio da Manhã”, sendo autor da crónica semanal “Aqui e Agora”. Nos últimos anos voltou a exercer advocacia, tendo marcado presença em programas como “Você na TV” (TVI), “Queridas Manhãs” (SIC) ou “A Tarde é Sua” (TVI). No último ano, Hélder Fráguas tem estado nos holofotes pelo seu desempenho no programa apresentado por João Patrício, «A Sentença», ao qual se dedica exclusivamente.