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Sónia Sénica, professora de Relações Internacionais e comentadora da CNN-Portugal 'A Europa está num dilema, entre a orfandade face aos EUA e a ameaça russa'

20-10-2025

O aumento do investimento na área da Defesa e Segurança tem de ser «muito bem explicado» pelos políticos europeus às opiniões públicas dos respetivos países. A afirmação é da comentadora e professora universitária Sónia Sénica que em entrevista analisa a ordem tripolar que caracteriza o tabuleiro geopolítico global.

Na capa do seu mais recente livro, «Ordem tripolar – O mundo dos grandes poderes» – surgem, de perfil, os líderes das três maiores potências da atualidade (Estados Unidos, China e Rússia). O que une e o que divide estes homens e as nações que lideram na atual ordem mundial?

Em termos de pontos de convergência temos de pensar numa visão muito particular do mundo, naquilo que é o reconhecimento interpares dos seus países como grandes poderes. Nesta era “Trump 2.0” existe a tentativa de restabelecer o prestígio internacional norte-americano. Por seu turno, Xi Jinping pretende alargar a esfera de influência chinesa por uma via muito mais pacífica e diplomática, não perdendo de vista outras áreas regionais, mas nunca abandonando uma tónica de mediação e de diálogo.

Já falou dos presidentes americano e chinês, falta Putin…

Putin tem o seu próprio projeto e uma lógica “putinista” que apresenta uma dimensão política interna, mas também uma expressão externa, com esta última a aproximá-lo dos seus congéneres americano e chinês, através de uma liderança política forte, personalizada e centralizada, procurando afirmar a Rússia como um grande poder. Do ponto de vista das divergências, destacaria a acesa disputa pela supremacia económica dos Estados Unidos face à China, que já existiu na primeira administração Trump e que agora é recuperada com novo vigor. Quanto ao relacionamento entre Trump e Putin, creio que o presidente russo tem sabido capitalizar e aproveitar o fascínio que o presidente americano demonstra publicamente por si. Acredito que Washington acabará por recalibrar a estratégia face a Moscovo, devido ao arrastar do conflito na Ucrânia, pelo facto de esta postura estar a colocar em causa o papel de mediador e pacificador que Trump tem procurado evidenciar com particular sucesso no Médio Oriente. Gostaria de lembrar que estes três países – Estados Unidos, China e Rússia – têm uma particularidade em comum: são membros do Conselho de Segurança da ONU, com direito de veto, o que lhes dá um grande poder em termos internacionais no sistema onusiano.

Com o fim da hegemonia liberal ocidental, o chamado período da “Pax Americana”, deixou de existir, neste momento, uma potência hegemónica?

Advogo que existe uma ordem tripolar com confluência e antagonismo em diversas temáticas e desafios. Em qualquer uma das dinâmicas de cooperação e de conflitualidade, temos a presença destes três atores e três lideranças. Nesta transição de poder que existe na atual ordem internacional os Estados Unidos procuram manter o papel de ator global. Por seu lado, a China, não afasta querer disputar esse poder, mas encontra-se muito mais focada num papel de mediador do que de beligerante.  O foco é muito mais endógeno, ou seja, a reunificação de Taiwan. Xi Jinping não se quer retirar sem conseguir este feito. Finalmente, a Rússia e o recurso que faz da força militar encerra um propósito antigo que é o de conter a confrontação estratégica com o ocidente alargado e evitar uma escalada de conflito direto com a NATO. Há um centrar de atenções no espaço pós-soviético.

O discurso de Vladimir Putin na conferência de política e segurança, em Munique, no ano de 2007, marca o fim do mundo unipolar. Foram subestimadas as ameaças de Moscovo, que vários anos depois se vieram a concretizar?

Esse carismático discurso de Putin foi claramente desvalorizado pelo ocidente. Ele aproveitou as decisões de política externa, pós-11 de setembro, tomadas pela administração de George W. Bush, nomeadamente as intervenções militares no Afeganistão e no Iraque. Essa foi a ideia ou a perceção de início do declínio da liderança norte-americana. No palco que teve em Munique, em 2007, Putin sublinhou dois argumentos de forma clara:  refutou a unipolaridade e a liderança da ordem internacional liberal por parte dos Estados Unidos e posteriormente advogou uma emergência multipolar ou policêntrica no sentido de criar várias áreas de influência, legitimando as pretensões do Kremlin. Desde então assistiu-se a uma política externa militarizada por parte de Moscovo: Em 2008, tivemos uma intervenção militar na Geórgia, a anexação da Crimeia, em 2014, e a intervenção na guerra civil da Síria para defender o regime de Bashar al-Assad, no ano seguinte. Foram todos fortes indicadores do caminho a ser trilhado pelo presidente russo.

O tabuleiro geopolítico global transfigurou-se a 24 fevereiro de 2022 com a invasão da Ucrânia por parte das tropas russas. Este plano há muito preparado por Putin visou satisfazer o revivalismo do império russo e a recuperação da grande Rússia, desfeito em 1991?

É preciso esclarecer que Putin não é um revivalista do período soviético. O presidente russo não é nada a favor do comunismo. Pelo contrário. O seu ideário e a sua inspiração histórica é, precisamente, reavivar a dimensão imperial russa. A grande Rússia ou a Rússia mãe.  Num artigo divulgado em 2021, Putin fundamenta as razões históricas que, na sua perspetiva, fazem da Rússia, da Bielorrússia e da Ucrânia um único povo, citando grandes czares, como Pedro, o grande ou Catarina, para demonstrar que há um quadro de excecionalismo exortando ao patriotismo russo, para justificar a sua opção de invadir a Ucrânia ou como Moscovo definiu, levar a cabo uma «operação militar especial».

Enquanto a guerra na Ucrânia está numa fase de congelamento, a guerra híbrida emerge com fulgor, inclusive ultrapassando os limites das fronteiras da Europa. Como muitas fontes militares apontam, o ataque da Rússia a um país da NATO vai acontecer, só não se sabe é quando?

Não me parece que Putin vislumbre um cenário de confrontação direta com a NATO. Na lógica custo-benefício, ambos os lados teriam muito mais a perder do que a ganhar com uma escalada do conflito dado o potencial militar de parte a parte. Entendo que o recurso à força militar por via da utilização da Ucrânia seja uma forma de testar capacidades e criar um conflito congelado, até porque Putin tem um histórico de aproveitamento e capitalização de outros conflitos nestas mesmas condições. Ele quer mostrar ao ocidente que, um dia, num quadro de diálogo e normalização de relações, que tarde ou cedo acontecerá, vai estar em jogo a nova arquitetura de segurança europeia. E Putin quer fazer parte desse projeto, acautelando as suas próprias garantias de segurança.

Em que medida é que a crise das instituições multilaterais (como é o caso da ONU) e o esgotamento das vias diplomáticas está a contribuir para este contexto geopolítico caótico?

Uma das principais consequências da invasão russa da Ucrânia foi a dimensão multilateral, pondo em causa a eficácia da ONU, criticada muitas vezes por uma certa letargia. Mas é preciso reconhecer que sendo a Rússia um membro do Conselho Permanente da ONU torna-se complexo colocar o sistema onusiano e a máquina das Nações Unidas a serem eficazes. A Europa demonstrou que não tinha uma estratégia pré-estabelecida para dar resposta a uma Rússia assertiva, beligerante e militarizada, no sentido de recorrer ao uso da força. Ao contrário do que seria desejável, a União Europeia foi muito mais reativa do que proativa.

Foi um antigo primeiro-ministro da Bélgica que, algures em 1991, caracterizou a Europa como «um gigante económico, um anão político e um verme militar». A falta de liderança, coordenação e voz comum na política externa pode tornar o velho continente irrelevante do ponto de vista geopolítico e estratégico?

A Europa está num dilema, entre a orfandade face aos EUA e a ameaça russa, que vai permanecer. Já disse publicamente que não podemos descartar a possibilidade de implosão do projeto europeu por este ser um propósito que o Kremlin persegue. A União Europeia tem dificuldade em falar a uma só voz, continua sem ser um ator no “hard power” e é preciso não esquecer que há alguns estados-membros que são uma espécie de “Cavalo de Troia”, mantendo alguma proximidade e laços com Moscovo. Estou a lembrar-me da Hungria, da Eslováquia e, eventualmente, podemos vir a ter outros. Já para não falar dos partidos eurocéticos com representação no Parlamento de Bruxelas e que acabam por criar constrangimentos, entropias e letargias.  Esta guerra híbrida promovida por Moscovo toca uma dimensão muita cara aos europeus que é o modo de vida democrático e que se encontra em claro retrocesso.

A meta de cinco por cento do PIB para a área da Defesa continua a ser insistentemente exigida por Trump aos países da NATO. A proposta de Portugal no seu Orçamento para 2026 já reflete um forte investimento nesta dimensão. É uma inevitabilidade para os próximos anos?

Em primeiro lugar, é preciso dizer que temos uma ameaça, que é inegável e incontornável, e não vislumbro que termine a curto ou a médio prazo. Os europeus e a Europa têm de ser dotados de maior capacidade, não no sentido da beligerância, mas na vertente da Defesa e da dissuasão. Segundo ponto: o incremento dos investimentos em Defesa terá de ser muito bem explicado pelas lideranças políticas às opiniões públicas dos seus respetivos países. Estas tomadas de decisão não foram feitas de ânimo leve e, como tal, têm de ser bem explicadas e clarificadas aos cidadãos. Para finalizar, creio que continua a existir uma grande entropia na UE, em particular no processo decisório, nomeadamente devido ao posicionamento de alguns países e estados-membros. Precisamente no dia em que falamos, a Comissão Europeia apresentou quatro projetos de defesa emblemáticos, incluindo um sistema de combate de drones e um plano para fortalecer a fronteira oriental, como parte de uma iniciativa para preparar o continente para se defender até 2030. Numa análise preliminar, creio que estamos perante uma espécie de sinergia entre a UE e a NATO. Acredito que será uma frente unida multilateral que vai ser muito importante para robustecer a influência ocidental face à ameaça de Moscovo.

É comentadora da CNN-Portugal desde 2022. Trata-se de um canal noticioso que preenche muito tempo com atualidade internacional e a respetiva análise. Para além do conhecimento que tem das matérias, como é o desafio constante e diário de comentar situações em permanente atualização e mutação?

Sou docente de Relações Internacionais, faço parte dos quadros da Universidade Autónoma de Lisboa e sou convidada na Universidade Nova – instituição onde fiz toda a minha carreira académica. Ao longo do meu percurso, apetrechei-me de competências e formas de investigação que utilizo no meu dia a dia, para que nos comentários que faço, enquanto académica, possa analisar os factos com idoneidade, conhecimento e profundidade. Com a guerra na Ucrânia, a CNN-Portugal mudou o paradigma dos canais de notícias, trazendo para a linha de atualidade, praticamente em permanência, a necessidade de análise. E isso obriga a que estejamos sempre atualizados. O que nem sempre é fácil. Aliás, digo sempre isto aos meus alunos de Relações Internacionais, em particular na primeira metade da licenciatura, que devem dar particular atenção à necessidade de atualização e leitura permanente. Até porque a atualidade internacional é de tal forma volátil que é essencial acompanhá-la a par e passo para que não se perca o encadeamento das situações e a evolução dos dossiers.

Fruto da maior visibilidade que a atualidade internacional tem nos órgãos de comunicação social, acha que os cursos de Relações Internacionais – que podem formar futuros docentes, diplomatas ou embaixadores – são cada vez mais atraentes para os mais jovens?

Curiosamente, sinto que temos cada vez mais jovens a manifestarem interesse pelas dinâmicas internacionais e política externa. Naturalmente que as dinâmicas de conflitualidade transmitidas pela televisão, nomeadamente a guerra da Ucrânia e também o conflito no Médio Oriente, em muito têm contribuído para isso. Para os eventuais líderes políticos, diplomatas e embaixadores do amanhã, o conselho que dou nas minhas aulas é que leiam literatura do género e não percam de vista a dimensão noticiosa e informativa. É uma condição indispensável para ir mais além numa área que considero fascinante.

 

A CARA DA NOTÍCIA

Academia, investigação e análise televisiva

Sónia Sénica é professora auxiliar no departamento de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa (UAL) e professora convidada na Universidade Nova de Lisboa – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. É ainda investigadora integrada do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI-NOVA), fazendo parte do seu Conselho Científico, e investigadora associada do Observare-UAL. É doutorada em Relações Internacionais pela Universidade Nova de Lisboa, mestre em Ciência Política e Relações Internacionais, licenciada em Ciência Política e Relações Internacionais pela mesma instituição e foi a primeira participante portuguesa no curso «Rússia e o mundo contemporâneo» da Academia Diplomática do Ministério dos Negócios Estrangeiros russo, em Moscovo (2003). Atualmente, é membro do Grupo de Reflexão do Atlântico do Instituto de Defesa Nacional (desde fevereiro de 2023), membro do Observatório de Segurança e Defesa da SEDES (desde 1 de junho de 2023). É comentadora de política internacional na CNN Portugal, desde 2022. «Ordem tripolar – o mundo dos grandes poderes» é o título do seu livro, editado pela Planeta, lançado em setembro.

Nuno Dias da Silva
Daniela Sousa / Direitos Reservados
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