As redes sociais, o uso de telemóveis, a estrutura familiar e a comunidade escolar, o enquadramento para explicar a forma como as crianças e os adolescentes se comportam nos dias de hoje e o impacto na sua saúde mental. Tópicos para uma conversa com a pedopsiquiatra, Ana Teresa Prata, tendo por mote a série «Adolescência».
A série «Adolescência», disponível na plataforma Netflix, relançou o debate sobre a saúde mental nas faixas etárias mais jovens. Para quem não viu o argumento é o seguinte: Jamie Miller, um adolescente de 13 anos, é acusado do assassinato de sua colega, Katie. Muito do que ali é relatado faz parte da experiência que tem da sua prática clínica diária?
Diria que esta série não é propriamente uma surpresa para quem lida, diariamente, com estes assuntos. Temos famílias sobrecarregadas com trabalho e pouco disponíveis em termos de tempo e emocionalmente para os jovens, escolas com professores desinteressados e pouco disponíveis para os alunos, jovens que passam muito do seu tempo na dimensão online, etc. Estes são alguns temas que estão presentes na série e que nos entram todos os dias pelo consultório, na nossa prática clínica. A questão dos “incels” (NDR: na tradução portuguesa, os celibatários involuntários) não é tão frequente no dia a dia, mas já se vai ouvindo nas consultas, em paralelo com realidades mais frequentes, como sejam, miúdos à procura de serem aceites, “bullying”, “ciberbullying”, violência nas escolas, etc. Foi algo que não teve grande eco na comunicação social, mas também gostaria de enfatizar a questão do contexto e da gestão familiar. Também se fala de dificuldades sociais e económicas, de um pai que trabalha o máximo que pode para ganhar mais dinheiro. Ao tema da habitação, por exemplo, não é dado grande enfoque, mas no nosso país temos relatos de casos muito delicados, em que em certas famílias vivem quatro pessoas no mesmo quarto. Isto tem implicações incontornáveis na dinâmica familiar e no desenvolvimento emocional dos jovens e das crianças.
O primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, deu instruções para a série ser exibida nas escolas de todo o país. Esse seria um exemplo a seguir em Portugal?
Entendo que esta série é feita para os adultos e não para os adolescentes. Tenho falado com vários jovens e as opiniões sobre a série dividem-se, mas os tópicos para reflexão e debate que emergem são mais direcionados para adultos e os cuidadores dos jovens, do que propriamente para os mais novos. Em síntese, apresentar a série nas escolas para os alunos creio que, por si só, seria inconsequente. Defendo que seria bem mais vantajoso exibir a série junto de grupos de adultos, sejam cuidadores, educadores, pais e professores, no sentido de dar ferramentas aos adultos para poderem comunicar com os adolescentes.
As conversas codificadas entre pares, com recursos a “emojis” com leitura cifrada, mereceu um esclarecimento da PSP, na sequência de pedidos de ajuda por parte de muitos pais. Estamos perante uma subcultura quase impenetrável assente numa socialização através do ecrã?
Não daria demasiado valor a esses códigos e a conversas mantidas por “emojis”. Desde que há internet, e comunicação virtual, sempre houve o recurso a estes “emojis”. Todos nós, quando fomos jovens, tínhamos termos e expressões que utilizámos. Já a questão dos “incels” é distinta. A diferença é que tem saído de espaços mais escondidos, como a “dark web”, para espaços muito mais expostos e de maior visibilidade, como as redes sociais. Isso sim, considero de relevo e preocupante, sempre que assumir uma carga mais pesada e violenta, ao nível de uma masculinidade tóxica, por exemplo. E o que me preocupa é que, também fruto desta maior visibilidade, se propague a um mais vasto número de jovens. Contudo, é preciso que se diga que os modelos de masculinidade não são passados unicamente através das redes sociais. É preciso atentar à nossa volta, onde existem pais, professores, tios e primos com quem nos relacionamos e também são definidores dos modelos sobre o que é ser homem e o que é ser mulher. É preciso, também, aligeirar esta carga que tudo de mal que acontece se deve às redes sociais. No próprio Parlamento, e que pode ser seguido na televisão, temos diariamente ofensas diretas contra mulheres, no hemiciclo e nos próprios corredores da Assembleia, protagonizadas por pessoas que exercem cargos públicos e que, até à data, não têm tido consequências. Isto é uma mensagem de impunidade que passa para a sociedade.
«A sociedade está a ficar doente, porque pessoas sem escrúpulos não podem ser influenciadores». A frase é de Manuel Coutinho, presidente do Instituto de Apoio à Criança. Se regular as redes sociais é, para já, aparentemente missão impossível, que solução advoga? Por exemplo, um controlo parental mais apertado?
Há várias formas de regular. Primeiro, compreender como funcionam as redes sociais e definir o controlo parental, ao mesmo tempo que é explicado aos jovens o que está em causa e o motivo pelo qual é preciso estabelecer regras. Por exemplo, identificar notícias verdadeiras e notícias falsas, distinguir o que são contactos online saudáveis e contactos online potencialmente nocivos, não usar o Tik Tok e o Instagram como motores de pesquisa, etc. Agora, é preciso que se diga o seguinte: proibir só, não chega. Proibir não ensina ninguém a proteger-se.
O que é que se podia fazer do ponto de vista político-legislativo?
Defendo que faz sentido promover uma discussão política sobre a forma como devemos regular as redes sociais, tendo como ponto de partida o impacto que elas têm no desenvolvimento dos nossos jovens. O grau de adição destas plataformas é enorme e estende-se, igualmente, aos adultos. É viciante, com a particularidade de os cérebros dos adolescentes estarem em desenvolvimento e ficarem mais permeáveis a estas questões aditivas. Os donos das redes sociais têm a perfeita consciência deste impacto negativo e criam os seus próprios algoritmos para prolongar e reforçar esta adição. Por isso, da mesma forma que se tem progredido, ao nível dos malefícios do álcool e do tabaco, deve-se tudo fazer para exigir às empresas detentoras das redes sociais algum tipo de regulamentação, com especial ênfase na questão da proteção de dados e dos algoritmos.
O governo ainda em funções propõe no seu programa eleitoral proibir telemóveis nas escolas até ao 6.º ano. É uma medida razoável ou poder-se-ia ir mais longe?
Pessoalmente, acho que é absolutamente razoável, estamos a falar de crianças e pré-adolescentes até aos 11/12 anos. A minha prática clínica diz-me que na faixa etária dos 11 até aos 13/14 anos, na fase de transição entre a infância e a adolescência, existe uma grande pressão na validação dos pares, que faz naturalmente parte do processo, mas ao nível das redes a pressão é ainda mais agressiva: ao nível das raparigas, na sexualização da imagem, por exemplo. Já ao nível dos rapazes, através de discursos de cariz machista. A escola é, de facto, um contexto muito particular. Se se limitar o acesso aos telemóveis, haverá tempo e oportunidade para a socialização entre os pares e para se conhecerem a si mesmos, explorando outras formas de estar. Os telemóveis são muito limitadores da experiência social. Não raro, nos recreios, os jovens estão lado a lado, e mandam vídeos uns aos outros de modo virtual, em vez de conversarem. Para os que defendem a proibição até aos 16 anos, por exemplo, creio que seria uma medida de mais difícil implementação. Mas, no imediato, penso que seria de grande utilidade, nas faixas etárias mais avançadas da adolescência, envolverem os jovens na discussão, para eventualmente emergirem novas propostas.
A pandemia deixou marcas difíceis de superar?
Sim, durante muitos meses esta foi a única forma de socialização que lhes foi permitida. Mas em contexto escolar é preciso propiciar e privilegiar todos os meios para que o contacto com o outro seja o mais direto possível.
Que sinais de alerta no comportamento dos estudantes devem ser valorizados pela comunidade escolar?
O principal motivo de alerta que devemos ter em atenção em qualquer criança ou adolescente é a mudança do funcionamento habitual ou do comportamento padrão. Exemplos: alterações de humor, irritabilidade, isolamento, atrasos ou faltas, envolvimento em brigas ou diminuição do aproveitamento escolar. Na comunidade escolar deve existir a sensibilidade e o sentido de responsabilidade de cuidar do processo de integração das crianças e adolescentes em contexto escolar. Por isso as escolas devem ter o papel essencial de agir quando há alertas que um aluno pode estar em risco e não apenas em ambiente escolar. É preciso perceber que a escola é, para muitos jovens, o único sitio onde estes ainda se sentem seguros.
A desestruturação e a disfuncionalidade de muitas famílias e o estilo vida acelerado nas sociedades modernas é uma dificuldade adicional para identificar potenciais “red flags” nos mais jovens?
Claro. Se a escola alertar para uma situação e a família do jovem se mostrar indisponível ou desinteressada para ouvir, a escolar sentir-se-á mais limitada na eficácia da sua intervenção. Na prática clínica recebemos crianças e adolescentes sinalizados pela escola e frequentemente são casos de doença familiar e não do próprio. E não estamos a falar necessariamente de maus tratos ou negligência. Pode ser um familiar gravemente doente, uma separação conjugal, uma mudança de casa, um pai desempregado, etc.
O Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) 2024 sinaliza o aumento da criminalidade grupal e juvenil, nomeadamente nas áreas metropolitanas. Como prevenir a consolidação deste preocupante caldo de cultura?
Os jovens estão fechados em casa, mas abertos para o mundo online, o que torna pouco frequentes as suas experiências sociais. Em primeiro lugar, perceber que faz parte da adolescência a descoberta da identidade e isso passa pela integração em grupos nos quais se identifiquem e até podem ser grupos que cometem atos de delinquência ou até gangs. Os criminosos recrutam jovens mais fragilizados, transmitindo-lhes um sentimento de pertença, segurança e um propósito que eles não têm no seu dia a dia. Tendo isto em consideração, a única forma de prevenção é procurar promover o encontro com outros jovens, eventualmente de outras idades, procurando fomentar a troca de experiências e para que eles encontram o sentido da vida. Dou três exemplos: os escuteiros, uma banda filarmónica ou a prática desportiva. É muito comum ouvirmos atletas de alta competição confessarem que a carreira desportiva evitou que enveredassem por caminhos menos recomendáveis. No fundo, substituir um cultura individualista por uma cultira de comunidade.
Vislumbra alguma relação no aumento da violência com o fácil acesso a qualquer tipo de conteúdo na internet?
É muito fácil o acesso nas redes sociais a conteúdos muito violentos, sejam assassinatos, torturas e até a própria pornografia. A banalização dessa violência faz com que quanto mais frequente ela for, mais inofensiva parece. Puro engano. E esse sentimento alastra aos próprios relacionamentos. Veja-se o caso da violação da jovem em Loures e a consequente partilha pública dos vídeos, o que reforça o sentimento absurdo de normalidade e impunidade perante um ato tão censurável.
Esta lógica é potenciadora da violência doméstica e no namoro?
Claro que sim. Com muita frequência tenho jovens na consulta que me dizem que estiveram numa relação tóxica. E sabem perfeitamente do que estão a falar, descrevendo situações de dolo, ameaças e violência. A aparentemente inofensiva intromissão na individualidade do outro (sobre o que pode ou não vestir, ou sobre com quem é que pode ou não pode conversar) é o caldo para evoluir para uma violência de outra qualquer natureza.
O psiquiatra Daniel Sampaio disse há poucas semanas que «consegue-se uma boa adolescência através de uma boa infância». Subscreve?
Não podia estar mais de acordo. Quanto melhor for nutrida a infância, melhor será a adolescência. Os primeiros anos das nossas vidas são, de facto, muito importantes. Se as pessoas tiverem uma infância harmoniosa, com um amor incondicional por parte dos pais, com comunicação fluente, em que a sua opinião é tida em conta, certamente que cria uma auto-estima mais robusta. Tal permite preparar para uma adolescência de auto-descoberta, mas o jovem sabe que tem sempre um porto seguro onde pode partilhar os seus desafios ou as suas angústias.
O professor Carlos Neto, que já entrevistámos para este jornal, é um dos maiores especialistas mundiais na área da brincadeira e do jogo e da sua importância para as crianças. Hoje em dia, é mais seguro brincar na rua ou brincar fechado no quarto, com um telemóvel na mão ou num videojogo?
Depende do sítio da rua onde se está a brincar ou do jogo que se está a jogar. Mas faz todo o sentido o que o professor Carlos Neto defende: há todo um corpo que tem de ser desafiado e experimentado. Os jovens estão muito fechados nos quartos. Há pouca experiência física e de movimento do corpo. A procura da segurança acaba por limitar, um pouco, a procura do jovem pelo seu próprio corpo e pelo espaço onde se insere. Quando os cuidadores tentam limitar os movimentos das crianças pelo fator segurança, também lhes estamos a transmitir que elas não são capazes, potenciando o medo. No futuro, na idade adulta, será mais difícil tomarem decisões. Resultado: pouca autonomia e maior ansiedade.
«A Geração Ansiosa - Como a Grande Reconfiguração da Infância está a provocar uma Epidemia de Doença Mental», um livro da autoria de Jonathan Haidt, aborda, sobretudo, o condicionamento que o mundo digital está a ter nos processos cognitivos. Esta geração está dominada por esta ansiedade incontrolável?
Sim, a ansiedade carateriza muito estas novas gerações, mas não só dos filhos, os pais também. Temos assistido a um aumento significativo de casos de ansiedade nas crianças e nos adolescentes, seja pelo contexto social, cultural, escolar ou familiar. Os jovens mostram-se muito preocupados com o que aconteceu ou por antecipação, com o que vai acontecer. Muito preocupados com o seu desempenho, muito preocupados em errar, não valorizando a importância do erro. Esta é uma questão muito cultural, mas os jovens podem e devem falhar, até porque estão na idade para isso. As redes sociais também são fortemente potenciadoras da ansiedade, porque ali tudo é perfeito.
A CARA DA NOTÍCIA
Experiência em contexto hospitalar e extra-hospitalar
Natural de Setúbal, Ana Teresa Prata é médica especialista em psiquiatria da infância e adolescência. Tem o mestrado integrado em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (2011). Pós-graduada em Neurodesenvolvimento em Pediatria, pela Universidade Católica (2014). tendo realizado o internato complementar no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central (2013-2018), onde posteriormente exerceu como assistente hospitalar (2018-2021). Exerce atualmente no Centro Hospitalar de Setúbal. Em contexto extra-hospitalar, exerce funções de direção clínica na Mentes Inquietas - Clínica do Desenvolvimento, Comportamento e Emoções. Pertenceu ao Grupo de Trabalho do Colégio de Psiquiatria da Infância e da Adolescência da Ordem dos Médicos para o estudo da diversidade de género na infância e adolescência.