O escritor e poeta português João Rasteiro, vencedor de vários prémios literários, olha para as novas tecnologias com atenção e considera que a Inteligência Artificial não irá substituir o homem/mulher poeta.
Foi um dos premiados do Prémio Internacional de Poesia António Salvado. Qual o significado desse reconhecimento para o seu percurso poético?
O reconhecimento é sempre gratificante, sobretudo quando vem de outros poetas que integram o júri, e ainda mais quando distinguem um livro apresentado sob o manto do anonimato, através de um pseudónimo. Já recebi alguns prémios, mas distinções como o Prémio Literário Manuel António Pina, o Prémio Literário Natália Correia ou esta Menção Honrosa – sempre conquistados com obras submetidas sob pseudónimo – deixam-me particularmente feliz. Essa imparcialidade na atribuição dos prémios dá-me uma satisfação especial. É claro que os prémios, além do regozijo momentâneo, podem trazer alguma visibilidade e, por vezes, oportunidades num meio editorial cada vez mais exigente, especialmente no que toca à publicação de poesia. Mas, por si só, os prémios não são essenciais; não podemos esquecer que Borges passou a vida sem ser premiado e que Tolstói, Joyce ou Beauvoir, igualmente sem distinções, são hoje incontornáveis “monstros da literatura”. Reconheço, contudo, que os prémios que tive a “graça dos deuses” de receber me conferem um pequeno acréscimo de responsabilidade a cada livro – aos já publicados e aos que ainda virão. E, no caso desta distinção no âmbito do Prémio Internacional de Poesia António Salvado – um poeta estranhamente e injustamente subvalorizado no panorama da poesia portuguesa contemporânea –, é uma alegria imensa poder associar o nome do poeta – cuja amizade e generosidade tive a honra e a sorte de receber – ao meu humilde percurso literário.
"Anatomia de uma derrota" é o nome do livro de originais premiado. Como classificaria esta sua obra?
A poesia, na sua insana ilusão, é sempre a “anatomia de uma derrota” anunciada. E, se é verdade que “os poetas, possíveis réstias de sonhos, / verso a verso sucumbem na inutilidade / calcária da utopia das grandes falas”, também é certo que, sabendo que a poesia não é a luz de qualquer epifania capaz de salvar o mundo – pois até ela, na sua própria anatomia, tombará e será derrotada –, o poeta, este poeta, permanece como artesão de uma linguagem que talvez ainda consiga provocar inquietação, suscitar perguntas, perturbar, fazer sonhar. Condenado à criação, terá de continuar a fazer, a seguir, a sonhar, a dizer – da sua inevitável glória: palavra, cinza, esquecimento. Sim, “Quedo-me na queda. / Derrotado e resignado / lastimo não me incendiar como a folha / da laranjeira ao cair esquecendo os frutos. // Só sei que não vivi para ‘chegar a um verso’. / Antes que o mundo recomece a sua história, / sei somente que vivi num verso para chegar a ti. / No verso tu és do tamanho de uma grande Galáxia.” Na ilusão de retardar o mais possível a inexorável “anatomia de uma derrota”, o poema persiste e persistirá como palco – o único palco onde se gravam as cenas vivas da memória, passada e futura. Esta obra é, por isso, mais um acrescento ao tear, que, como Penélope, desejo desfazer à noite; ao meu tear, que espero nunca concluir, pois “a morte chega de saliva em saliva. É a cristalina anatomia de uma derrota, a anunciação do divino. Celebra, celebra, pois, o encontro. Trinta moedas de oiro e uma só rosa.”
Que mensagens quis transmitir aos seus leitores?
Este livro - precisamente por ser o mais recente - procura resistir o mais possível à insanidade do mundo, à insanidade dos dias: os do mundo, os meus, os da própria poesia. Hoje, a poesia é como o escudo de Leónidas em Termópilas – essa batalha de 480 a.C., nas Guerras Greco-Persas, onde um pequeno contingente grego, liderado por Leónidas e cerca de trezentos espartanos, enfrentou o vasto exército persa. Apesar da derrota – uma derrota esperada e anunciada – a coragem dessa resistência tornou-se símbolo e impulso para que as cidades-estado gregas se unissem, conduzindo às vitórias que afinal puseram termo à invasão. É isso que pretendo quando escrevo poesia. E, neste livro em particular, procuro mostrar que a poesia – como a arte em geral –, mesmo sabendo-se derrotada de antemão, deve enfrentar este mundo ditatorial, cruel, sujo. Deve ser, ainda que por um breve instante de combate, a lâmina aguda, a pequena peçonha capaz de ferir a monotonia, a indiferença, o tédio da palavra, da linguagem, do silêncio devorador: do Mundo. Resistir, resistir em poesia – “Como será a última batalha antes da derrota? / Pela tarde, afastar-me de uma multidão ensurdecedora / de rugidos antigos sem deixar de ouvir? / A cada um o olvido, a cada um o olvido que o fará.”
Nas gerações mais novas o livro é muitas vezes substituído por conteúdos digitais e pelo ecrã do computador, tablet ou do telemóvel. De que forma, enquanto escritor, olha para esse fenómeno?
As notícias – embora discretamente empurradas para segundo plano pelo aparelho publicitário e pela propaganda em curso – são cada vez mais numerosas e alertam para as graves consequências do ensino online e da exposição precoce e prolongada de crianças e jovens à parafernália tecnológica (tablets, smartphones, televisão, redes sociais). Numa recente entrevista à BBC News, Michel Desmurget, diretor de investigação do Instituto Nacional de Saúde de França, afirma que estamos a formar uma geração de “cretinos digitais”: crianças e jovens que, no futuro, terão passado “o equivalente a 30 anos letivos diante dos ecrãs – ou, se preferirmos, 16 anos de trabalho a tempo inteiro!”. Segundo o investigador, isto corresponde a “quase três horas diárias para crianças de dois anos, cerca de cinco horas para crianças de oito anos e mais de sete horas para adolescentes”. Antes de completarem 18 anos, certas competências cognitivas estarão irremediavelmente afetadas, sobretudo as competências sociocognitivas: aquelas que dizem respeito à produção discursiva, à linguagem, à capacidade de compreender o mundo e, a partir dele, estabelecer relações de associação, dedução, indução ou empatia. Em rigor, é precisamente desta apreensão da complexidade do real que falamos – e devemos falar – quando observamos a situação atual do ensino. Está em causa a construção de uma personalidade livre e responsável, consciente e autónoma. Sem o desenvolvimento das competências sociolinguísticas e socioafetivas, o indivíduo torna-se pouco mais do que um conjunto de forças primitivas, pronto a explodir perante qualquer adversidade – basta observar os surtos de fúria, os estados de depressão ou a apatia que hoje atingem tantas crianças e adolescentes. Por isso, não sendo eu detentor das soluções para que esta situação siga um rumo diferente – até porque nunca li, nem alguma vez lerei, um romance ou um livro de poesia que não seja em papel –, encaro este “problema” com profunda apreensão e angústia. Hoje, nesta paisagem digital, neste território virtual, “de joelhos esquálidos no chão sujo / esmagam-se as palavras, as falas e até os versos”.
As novas tecnologias podem ser um aliado para criar hábitos de leitura?
Neste mundo saturado de informação e conhecimento, onde tudo parece interligado, é visível o interesse crescente das crianças e jovens pelas tecnologias, que oferecem conteúdos de forma rápida, dinâmica e visual, muitas vezes acompanhados de vídeos, gifs, sons e imagens. Os conteúdos, porém, tendem a ser negligenciados, comprimidos em mensagens breves. Um livro – e talvez um livro de poesia ainda mais – exige tempo, silêncio e atenção do leitor. Daí o crescente desinteresse pela leitura e pelo contacto com autores consagrados. No entanto, a tecnologia, quando bem utilizada e orientada, está longe de ser uma inimiga absoluta; pode, pelo contrário, tornar-se uma aliada poderosa. O digital permite acesso à “leitura” – mesmo que mínima – em regiões do globo onde possuir um livro, ou sequer um espaço adequado para estudar, é um sonho maior do que qualquer verso. E, em geografias social e economicamente mais desenvolvidas, pode ser mais do que uma distração: pode ser uma ponte. Uma ponte para regressar à leitura não por obrigação, mas por desejo; para recordar – ou descobrir – que as palavras podem acender, comover, transformar. É certo que ler e adquirir conhecimento através do digital – ler “bem” – é uma tarefa cada vez mais complexa na sociedade atual, inclusive no contexto educativo. Esse é o grande desafio: porque ler “bem”, ler de verdade, continua a ser um dos pilares essenciais de uma democracia saudável, de futuro. Assim, a tecnologia pode, além de expandir o acesso em regiões cultural e economicamente desfavorecidas, oferecer uma via única para reconstruir o hábito de leitura numa geração habituada ao digital. Mas essa ponte só será eficaz se evitarmos um uso superficial ou meramente instrumental das ferramentas digitais. Mais do que formar pessoas que leem mais, trata-se de formar pessoas que leem “melhor”, com maior empatia, profundidade e capacidade crítica. Este será um dos maiores desafios das sociedades democráticas. Porque a tecnologia não é o destino: é apenas uma ferramenta.
A Inteligência Artificial veio para ficar. Enquanto autor como vê este novo instrumento?
Para além da crescente proliferação e uso da arte digital – e, concretamente, da poesia digital – com os seus desafios e potencialidades, onde se procura uma “hiper-poética” assente na descentralização e na não linearidade, na interação do poema com o leitor e com o espaço digital, bem como no som e no movimento, há algo que me parece essencial ter sempre presente e que a IA não possui, não possuirá: intenção! A ausência de intenção artística denuncia uma artificialidade poética – literária e estética – incompatível com o fazer poético, que é, antes de tudo, um gesto voluntário, inscrito artística, social, cultural e historicamente. Como afirma o poeta e professor Manuel Gusmão, mesmo que se atribua a genealogia de versos ou poemas a um algoritmo, tal permanece uma impossibilidade absoluta: a condição de criador. Qualidade humana – e apenas humana – porque, por mais veloz ou extraordinário que seja o algoritmo, nunca será portador de “causa, origem e finalidade, criação, consciência, sujeito, autoridade, liberdade e responsabilidade” – humanidade! Também o escritor José Eduardo Agualusa afirmou recentemente no Fólio, em Óbidos, que “um mau escritor nunca escreverá um bom romance com o recurso à inteligência artificial”, embora “um bom escritor talvez consiga escrever um romance melhor a partir do momento em que saiba usar esse instrumento”. A partir do meu conhecimento ainda incipiente da IA, sou igualmente levado a pensar que um mau poeta dificilmente escreverá um bom poema – quanto mais um livro – recorrendo à inteligência artificial; mas um bom poeta poderá talvez escrever alguns poemas um pouco melhores quando necessitar, por exemplo, de determinadas referências históricas ou literárias, ou até de apoio estilístico ou ortográfico, consoante o seu modo de escrita. E atrevo-me a ironizar: se um dia, através da IA, “roubarem” a autoria de algum poema – meu ou de qualquer grande poeta –, peço apenas: se plagiarem, plagiem bem, com a alma inteira, para que o novo poema seja a derradeira “anatomia da derrota”.
A arte de poetar será sempre humana, ou a máquina (leia-se inteligência artificial) pode também assumir esse papel?
A inteligência artificial – ainda que avance com descomunal velocidade no seu raciocínio e aprendizagem – apenas mimetiza o estilo do escritor, do poeta, do autor. Contudo, essa imitação costuma soar forçada, até mesmo caricata, pois rapidamente – ao menos para leitores habituados ou mais atentos – desliza para exageros linguísticos e metafóricos, resultando em textos ou poemas marcados por notáveis desequilíbrios de qualidade literária. Mesmo quando se considera a possibilidade de uma Superinteligência Artificial (ASI) – frequentemente apontada, ainda que de forma especulativa, como o estágio futuro da IA –, capaz de analisar dados e tomar decisões com uma rapidez e profundidade muito superiores às da chamada IA forte, permanece a dúvida essencial: até que ponto tal capacidade ultrapassa o mero processamento e se aproxima, de facto, da compreensão e da experiência humanas? Existe um grão no vasto Universo, chamado humanidade, que nenhuma máquina, tecnologia ou IA será capaz de sentir ou reproduzir. As fragilidades mais íntimas do ser humano – que às vezes alimentam pensamentos ou práticas terríveis e, noutras ocasiões, inspiram gestos sublimes de amor e generosidade – são impossíveis de imitar ou experimentar, por mais extraordinária que a IA seja hoje ou venha a ser no futuro. Ela permanece confinada a algoritmos e modelos matemáticos e jamais – estou plenamente convicto disso – poderá replicar o engenho e a aptidão humana. Mas, sobretudo, não conseguirá reproduzir a emoção em constante conflito com a razão, esse magnífico e por vezes trágico tumulto que vibra no interior de um coração humano. Apenas esse fulgor — ao mesmo tempo cruel e maravilhoso — próprio da humanidade foi capaz de criar “o chão, o coração, o amor e a lágrima; de conceber Deus, a crença, a oração, o verbo e a poesia.”
Como analisa o aparecimento de jovens autores poetas?
Vivemos um tempo em que, após muitos terem seguido uma moda autoproclamada poesia marginal – de pobre prosaísmo – e que certa academia um pouco provincianamente tentou elevar a paradigma único de poesia válida, começam agora a surgir vozes empenhadas em encontrar novas formas de dizer. Procuram recentrar na metáfora o eixo da criação poética. E creio que, sobretudo no feminino, são as mulheres que têm conseguido abrir a metáfora a possibilidades inéditas de sentido. Ainda assim, noto também que há quem deseje publicar poesia sem ter lido o suficiente, sem compreender que a poesia, como qualquer arte, exige extensa leitura e reflexão. Jorge Luís Borges dizia que a sua poesia era sobretudo uma ressonância dos seus mortos. Ou seja, de todos os poetas que tinha lido, de todos os poetas que tinham permanecido. A originalidade não significa criar algo do nada, mas sim o uso único e pessoal das leituras e influências - da linguagem para criar uma experiência nova e singular. A originalidade é um processo demorado – quando, de facto, chega a existir. Sendo a poesia indissociável da própria vida, permanece, contudo, a necessidade de aguardarmos, dentro dela, a chegada do duende – não a musa nem o anjo, mas o duende. Essa entidade quase demoníaca, que ama a orla, o limite, a ferida, e que se aproxima das bordas do poço em aberta luta com o criador, salpicando de sangue o verbo. Mas, devendo os jovens autores, talvez continuar a seguir o conselho de Rilke, para que não haja pressa em publicar, continuam a surgir na nova poesia portuguesa jovens poetas e poetisas que já evidenciam pequenas “marcas de estilo”. Entre eles, posso mencionar nomes como Maria Lis, Maria Brás Ferreira, André Osório, Beatriz de Almeida Rodrigues ou Sofia Lemos Marques, apenas para citar alguns nomes que me parecem destinados a “permanecer” ou deixar vestígio. A poesia, como corpo de “estorvo”, como esse pequeno – e ainda bem – nicho onde a palavra, em instantes de fulgor, ressoa e fere os ouvidos cada vez mais entupidos de cera pelo mundo contemporâneo, jamais deixará de ver nascer novas vozes. Nunca deixará de esperar o surgimento de uma outra VOZ poética que golpeie, que fira – se possível, cruel e barbaramente –, que faça sangrar. Pois, citando Virgílio: “A única salvação para os vencidos é não esperarem nenhuma salvação.”
Que projetos tem, de escrita, publicações ou outros para 2026?
No atual contexto literário, e sobretudo poético, português, os projetos não significam muito. Contudo, como já referi, em 2026 o meu principal projeto permanece inalterado: continuar a escrever. Isso é absolutamente essencial para mim –, escrever é quase um pequeno inalador de oxigénio. Será também um ano de publicações: na primavera, sairá nos EUA – com tradução de Diniz Borges, professor na California State University, Fresno – a minha obra SARDOAL, distinguida em 2023 com o Prémio Literário Natália Correia. Em Espanha, deverá ser publicado pela SABARIA Editora um livro de contos e, em Portugal, surgirá um novo livro de poesia, editado pela The Poets and Dragons Society. Há ainda algumas possibilidades, embora ainda muito embrionárias, de publicar um livro no Brasil e talvez, no final de 2026, outro livro de contos em Portugal. Mas, como disse, o projeto que não falhará é – e tem de ser – escrever. Na verdade, “Também eu, Telémaco, não alcanço / decidir o que escrever nesta lápide, / a minha, a deste país ou a deste poema, / perante uma inevitável derrota. / (…) / E como rubra embarcação, leito de sangue / de onde ferve a alegria desta ferida, / de onde troçam talvez os deuses, Telémaco, / brilhando de mim para os ossos, um oceano. // Circundo a lápide, quatro versos e um corpo.”