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Diretor Fundador: João Ruivo Diretor: João Carrega Ano: XXVII

Nuno Jacinto, presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF) ‘Se os cuidados primários não derem resposta, o resto do SNS ficará em sérias dificuldades’

18-03-2024

É possível ter um médico de família para cada português, mas esse objetivo só é alcançável com medidas para atrair e reter talento, estancando as saídas de profissionais do SNS para o setor privado. Nuno Jacinto, presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, defende que os cuidados primários de saúde têm de ser a porta de entrada e a base do sistema de saúde e adverte que só com investimento nesta área será possível poupar recursos em toda a cadeia.

Sou um dos 1,7 milhões de portugueses sem médico de família atribuído. Para conseguir uma vaga tenho de telefonar ou mandar um email logo no primeiro dia de cada mês e nem sempre é garantido que consiga. Outros, com pior sorte, têm de ir ao centro de madrugada para conseguirem a dita consulta. Como é que chegámos a este ponto?
Este é certamente dos problemas mais graves que temos no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Em primeiro lugar, não temos conseguido, ao longo dos anos, manter e fixar os médicos de família no SNS, desrespeitando e desvalorizando o trabalho desenvolvido por estes profissionais. Por outro lado, não acautelámos devidamente aquilo que é a demografia médica. No meio de tudo isto sabíamos que ia registar-se um pico de reformas, fase que ainda estamos a atravessar. As várias tutelas assumiram que os especialistas formados nesta área iriam fixar-se no SNS, mas não foi isso que aconteceu. E no pós-pandemia esta realidade ainda se agravou mais. Os médicos de família, em muitos casos, não se sentem felizes com as condições de trabalho que têm no SNS.

E as condições de trabalho traduzem-se, em concreto, no quê?
Estamos a falar de remunerações, progressão nas carreiras, deficientes espaços físicos de trabalho, etc. Estes foram os ingredientes para que muitos destes médicos saíssem do SNS. Não é, por isso, de admirar, que neste momento, e de acordo com os últimos números, cerca de 20 por cento da população não ter um médico de família atribuído. E as perspetivas, no curto prazo, não são famosas.

O concurso aberto pelo governo no final do ano para a contratação de cerca de 1000 clínicos recém-formados teve 143 candidatos admitidos. Isto é um fracasso?
Sim, mas há aqui duas dimensões que importa atender. De facto, nos últimos concursos o governo decidiu abrir todas as vagas disponíveis para médicos de família, o que significa, de alguma forma, o reconhecimento da dimensão do problema. Só que esta abertura de vagas aconteceu na segunda época dos exames onde, por norma, existem poucos candidatos a acabar. Dos 500 médicos formados por ano temos retido cerca de 70 por cento, em média. Por seu turno, 150 colegas optam por outra saída que não o SNS. E desses 350, passado um, dois ou três anos, há mais umas dezenas que acabam por abandonar o SNS. Ou seja, dos 500 médicos iniciais ficamos praticamente com metade, o que é manifestamente muito pouco para as nossas necessidades, ainda para mais com as saídas provenientes pelas reformas e o descontentamento. Uma questão que também merece a nossa atenção são os colegas que têm uma lista de utentes desmesuradamente grande, o que acaba por inquinar os dados que são revelados. Certo é que nos últimos anos temos tido um claro saldo negativo entre aquilo que são as entradas e saídas de médicos de família no SNS.

Depois de anos de carência, a partir de 2026 haverá médicos de família em «excesso». Isto é uma projeção do Ministério da Saúde até 2030, que estima ainda que a falta de médicos de família nos centros de saúde começará a atenuar-se já a partir do próximo ano. Estes anúncios feitos em plena campanha eleitoral têm base de sustentação?
Falar em «excesso» é errado, quando neste momento faltam mil médicos de família. Admito que tenha sido um excesso, mas de linguagem, próprio da altura que estávamos a atravessar. O que se prevê é que daqui a dois ou três anos se registe uma franca redução das reformas destes profissionais. Das centenas que temos tido, passaremos a algumas dezenas. Isto não é mérito ou demérito de ninguém, deve-se à demografia médica e a um fosso geracional. Por outro lado, há ainda a considerar que teremos uma média de 500 médicos formados para esta especialidade. Será que os vamos reter todos no SNS? Duvido muito. Uns vão emigrar, outros vão para o setor privado. Isso tem de ser tido em consideração. Em suma, fazer estas previsões com base num Excel em que as contas não falham, acho que é um exercício que não é completamente fiável.
Por isso, a tutela ou as tutelas que estiverem em funções nos próximos anos devem aproveitar esta janela de oportunidade para atacar o problema.

Disse não achar uma ficção conseguir ter um médico de família para cada português. Para quando essa meta?
Essa meta é exequível se conseguirmos reter os profissionais que vão abandonando o SNS. Se pensarmos num horizonte de uma década, com a adoção de medidas de reconhecimento e valorização desta carreira, acredito que teremos este problema praticamente resolvido. Feito isto teremos de pensar em solucionar outro problema: o ajuste das listas de utentes. Não é possível ter médicos de família com cerca de 2 mil pacientes a seu cargo.

O compromisso de garantir um médico de família para todos os grupos prioritários da população continua por cumprir?
Ainda não temos um médico de família para todos os grupos prioritários da população. Contudo, em muitos locais, já é esse o critério definido para se atribuir médico de família quando há médicos com vagas nas suas listas. Isso acontece com as grávidas, crianças até 2 anos de idade, os diabéticos, os hipertensos, os doentes oncológicos, etc. O problema é que continuam a faltar muitos profissionais no sistema. Logo, não é possível atribuir um médico por decreto a esses grupos prioritários. Recordo que há unidades de saúde, em Lisboa e Vale do Tejo, que não têm um único especialista de medicina geral e familiar.

O trabalho concreto de um médico de família vai além da consulta com o paciente. Há burocracias para resolver, a prescrição de medicamentos para fazer e os sistemas informáticos que não raro teimam em não colaborar. Estes são alguns dos calcanhares de Aquiles que acabam por pesar negativamente, por exemplo, na produtividade destes profissionais?
A questão da burocracia é um dos grandes problemas da medicina geral e familiar em Portugal. Continuamos com muitos papéis (relatórios e formulários), com muitos cliques e continuamos a usar sistemas de informação que pouco comunicam entre si, impedindo uma comunicação expedita e ágil com os hospitais e com a Segurança Social. Estamos constantemente a fazer relatórios com informação repetida, temos de inserir exames no sistema, etc. Entretanto, existiram alguns passos positivos para inverter esta situação, como é o caso do aumento do prazo de validade dos medicamentos para um ano, a autodeclaração de doença ou as baixas poderem ser emitidas por qualquer médico. Mas falta um caminho longo a correr. O profissional também precisa de tempo para estudar, programar as suas atividades, convocar os doentes sempre que entenda necessário, numa atitude proativa. Infelizmente, a realidade não é esta e o médico anda a «apagar fogos» por todos os lados e naturalmente o próprio paciente não tem acesso aos cuidados que devia ter.

O mecanismo das “autobaixas” é uma burocracia a menos para os médicos de família, mas o número de portugueses que recorreu que a elas disparou. Só em janeiro, em apenas 15 dias, mais de 60 mil pedidos. Este dado causa-lhe apreensão?
Gera apreensão, não por se tratar de uma matéria do território médico, mas do ponto de vista da nossa responsabilidade individual enquanto cidadãos e membros desta sociedade. Mas é preciso reconhecer que, tradicionalmente, já havia mais pedidos de baixa aos médicos de família, em particular no início da semana ou em períodos festivos, da mesma forma que se verifica uma maior afluência às urgências hospitalares e até às consultas do dia nos centros de saúde. Numa primeira análise, esta realidade não difere assim tanto do que já se passava. A diferença substancial é que o ónus passa a recair no próprio cidadão, aligeirando a carga de trabalho sobre os médicos e os médicos de família. Contudo, admito que visto ainda ser muito recente, este mecanismo deve ser monitorizado, introduzindo-se eventuais correções, caso se ache conveniente.

O slogan da “Linha SNS 24” era durante a pandemia «a porta de entrada no SNS», mas são os profissionais de medicina geral e familiar a porta de entrada privilegiada para todo o sistema de saúde. Um médico de proximidade que conhece o doente pelo nome e sabe de cor as suas maleitas. Qual a importância do papel dos cuidados primários para uma lógica de prevenção de doenças – em especial das graves – e que caso não sejam diagnosticadas a tempo irão afluir e congestionar as urgências?
Infelizmente, não tem acontecido a aposta que se exigia nos cuidados de saúde primários. Enquanto não olharmos como uma verdadeira aposta para estes cuidados, iremos sempre continuar a introduzir paliativos e a colocar pensos rápidos. Os cuidados primários de saúde têm de ser a porta de entrada e, já agora, acrescento, a base do SNS. Ao SNS tem de caber a gestão do processo de atender as situações de doença aguda, não emergente e não urgente. Mas para tal é preciso que existam as condições, nomeadamente ao nível dos recursos humanos. Os médicos família têm de ter condições para organizar o seu trabalho de forma programada, tendo a seu cargo um número de pacientes adequado e não em excesso, e para controlo das doenças crónicas. Evitar descompensações e consumir recursos aos serviços de urgência ou consultas hospitalares manifestamente desnecessárias. Como funcionamos em cadeia, se os cuidados primários não derem resposta, o resto do sistema ficará em sérias dificuldades – a “Linha SNS 24”, a rede de cuidados continuados, as consultas e os internamentos hospitalares, e no fim da linha, as próprias urgências. Sai muito mais caro ao Estado se tivermos um doente internado, do que se tivermos que tratar e acompanhar esse mesmo paciente nos cuidados de saúde primários. Por isso, o que investirmos nos cuidados primários iremos poupar no resto da cadeia de saúde, mais à frente.

Ou seja, o acesso a um hospital deve ser apenas em último recurso ou para doença severa?
Os hospitais devem ser reservados para aquilo que eles são efetivamente precisos: os grandes traumas, os AVC, os enfartes, as descompensações que não conseguiram ser controladas nos cuidados primários. Com isto, garantimos mais vagas de internamento, mais acesso às urgências e até às próprias cirurgias.

Em artigo recente publicado na imprensa, o Bastonário da Ordem dos Médicos, Carlos Cortes, referiu que «se as atuais reformas na saúde não forem bem feitas, podem destruir as conquistas alcançadas nestas últimas décadas pela medicina geral e familiar. Seria desastroso». Partilha desta apreensão?
Sem dúvida. A nossa especialidade tem 40 anos de existência. Foi um percurso duro e longo. Perante a carência de médicos de família tem havido a tentação de ir pelo caminho mais fácil: colocar outros profissionais a fazer o seu trabalho, aumentar as listas de utentes, etc. Esta atitude faz perigar tudo aquilo que foi conquistado. As reformas não podem ser feitas apenas porque fica bem ou porque dão votos.

Falamos no dia seguinte às eleições legislativas, que deixaram um cenário político muito embrulhado. Considera urgente um entendimento alargado entre as principais forças partidárias no âmbito da saúde?
Na saúde e noutras áreas cruciais não podemos andar a mudar de política sempre que há um novo governo. Se continuarmos a mudar políticas a esta velocidade, seguirá a política de “terra queimada” que não favorece ninguém – nem os utentes, nem os profissionais. As equipas e os profissionais do sistema precisam de saber que existe um rumo e uma estabilidade. As políticas de saúde precisam de ter um horizonte temporal mais alargado. E para tal é necessário um entendimento parlamentar com o maior número de forças políticas.

Apesar de todos os anos serem muitos os jovens a saírem das faculdades de medicina é escassa a capacidade de atratividade desta especialidade. Há estratégias para atrair e reter talento, para não vê-lo escapar?
Há muitos jovens que quando acabam o curso não escolhem qualquer especialidade, preferindo ficar a fazer serviço à tarefa ou urgências de forma não diferenciada – o que é preocupante para a medicina geral e familiar. Por outro lado, há os que já entraram e fazem a sua especialidade, não querendo ficar no SNS. A questão remuneratória é fundamental e tem de ser atacada. Mas não pode ser a única. Os médicos precisam de ter um salário digno, mas não se pede que seja ao nível de um jogador de futebol. Mas há mais reivindicações. É preciso uma carreira médica que, neste momento, não existe, com uma progressão célere, baseada no mérito, com real diferenciação. É este estímulo de valorização e reconhecimento que deve ser associado ao SNS, o que neste momento não acontece. Também é preciso uma flexibilização dos horários e uma maior autonomia. Já para não falar das condições de trabalho (as físicas, ao nível dos espaços, muitos deles degradados e com deficiências crónicas), e sistemas de informação e informáticos que deixam muito a dever à qualidade. Costumo dizer que os nossos programas informáticos deviam ser como os programas de controlo de tráfego aéreo do aeroporto: nunca deviam falhar. Pelo contrário, os nossos sistemas falham quase todos os dias. Isso não pode acontecer.

As teleconsultas e a Inteligência Artificial (IA) foram alguns dos temas abordados durante as 33as Jornadas de Medicina Geral e Familiar, organizadas pela vossa associação, em Évora. De que forma é que estes novos desafios vão afetar a medicina de proximidade?
Acredito que os prós são muito superiores aos contras. Não me parece que a máquina vá substituir o homem e se isso acontecesse estaríamos a prestar maus cuidados às pessoas, até porque terá de haver sempre uma validação por parte do profissional daquilo que é determinado pela IA. A IA é muito importante na área de apoio à decisão clínica, possibilitando decisões mais personalizadas ao doente e à sua situação em concreto, um sistema de alertas, a conjugação de dados clínicos e também a redução da carga burocrática. Isto vai ajudar sobremaneira o médico na sua vida diária. Na poupança de tempo, em ganhos de eficiência e não só.

 

Cara da Notícia

Medicina de proximidade

Nuno Jacinto nasceu a 29 outubro de 1982, em Lisboa. Membro da direção nacional da APMGF desde 2012, à qual preside desde janeiro de 2021, tendo sido reeleito para novo mandato entre 2024 e 2026. Desde janeiro último é o novo diretor clínico para os cuidados primários da Unidade Local de Saúde Alentejo Central, em Évora. É licenciado em Medicina pela Faculdade Medicina de Lisboa (2006) e pós-graduado em Administração de Unidades de Saúde pela Universidade de Évora (2018). É especialista em medicina geral e familiar, desde 2011, sendo consultor e assistente graduado de medicina geral e familiar desde 2021. Foi presidente do conselho clínico e de saúde do ACES Alentejo Central, de setembro de 2020 a julho de 2021.

Nuno Dias da Silva
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