Defensora de um feminismo em que homens e mulheres tenham uma igualdade plena, nomeadamente de oportunidades, Helena Ferro de Gouveia admite também que a «síndrome do silêncio» das vítimas de assédio moral e sexual está a esbater-se, mas defende a generalização das comissões independentes, como aconteceu na igreja.
«Mulheres na guerra – combatentes, comandantes, espias», é o título do seu livro, editado pela Oficina do Livro, que partiu de um desafio da editora, em pleno conflito na Ucrânia. Esta homenagem a algumas heroínas desconhecidas pode ser considerado o seu contributo para elevar a condição feminina e para a igualdade de género?
Este livro pretende suscitar múltiplas dimensões: a primeira, o impacto que a guerra tem na vida de cada um de nós. Não pensamos e não refletimos sobre a guerra, mas ela está presente no nosso quotidiano, em coisas tão simples como, por exemplo, a triagem de Manchester, uma prática desenvolvida nas guerras napoleónicas e que faz parte do nosso dia a dia. O facto de os comboios terem horários deve-se, também, às guerras. Para além disso, há a dimensão do horror, do sofrimento e da destruição, sem esquecer que a vertente disruptiva dos conflitos também pode, em certos casos, contribuir para a inovação. Por outro lado, como sempre me interessei por assuntos relacionados com mulheres, sobretudo pelo seu desaparecimento da esfera pública – que acontece no campo da música, nas artes, na pintura, na vida social, na política, etc. – sempre me questionei, onde é que elas andam?
E pelo que conta, há muitas mulheres que desconhecíamos que estiveram na linha da frente em muitas guerras?
O conflito da Ucrânia veio trazer a consciência que as mulheres também estão nesta guerra. Muitas pessoas ficaram surpreendidas, quando souberam que o exército ucraniano tem entre 50 a 60 mil mulheres, boa parte delas na linha da frente, seja a pilotar helicópteros, como “snipers”, etc. Por isso, quis trazer para o foco as combatentes e as suas histórias, mais recentes ou mais antigas, algumas delas foram rainhas e comandantes militares. Desde a antiguidade clássica a mulher teve sempre um papel interventivo nas guerras e nem sempre se posicionou na retaguarda. Falo do papel na frente das batalhas de enfermeiras, médicas e jornalistas, destacando, neste último caso, o exemplo da Martha Gellhorn, a única jornalista (do sexo feminino ou masculino) a estar presente no desembarque da Normandia. Bem sei que James Bond, o agente 007, é o protótipo do espião, mas as maiores espias foram mulheres e Virginia Hall, é uma das personalidades que abordo.
As mulheres e as crianças são as principais vítimas dos conflitos, e a guerra da Ucrânia não fugiu à regra. Esta sua abordagem pretendeu mudar o foco, desmistificando a ideia pré-concebida que a guerra é apenas um «negócio de homens»?
Quando se pensa em mulheres na guerra, pensa-se, fundamentalmente nelas como sendo as vítimas. Mas, na verdade, são muito mais do que isso. Quando estive na Ucrânia para resgatar um grupo de refugiados para Portugal, trouxe uma criança, cuja mãe e o pai ficaram lá. O pai não podia sair, mas a mãe optou por ficar a combater pelo seu país. As mulheres começam a ter as mesmas competências e capacidades que os homens, em cenários tão adversos. Isto é uma mudança de perspetiva e é muito importante reforçar este ponto.
Cândido Pinto é a única repórter de guerra portuguesa que regularmente cobre conflitos em todo o mundo. O espaço do comentário sobre conflitos ou terrorismo ainda está dominado pelo sexo masculino?
A Cândida Pinto é a mais antiga repórter de guerra, mas já tivemos, a Alexandra Lucas Coelho e a Sofia Branco, do “Público” e mais, recentemente, a Ana França, do “Expresso”, que esteve na Ucrânia. O paradigma está a mudar, especialmente no comentário. A única mulher a falar de terrorismo, até há bem pouco tempo, era a professora Cátia Moreira. Nos conflitos armados, nas guerras passadas, do Iraque e Afeganistão, o comentário era quase exclusivo de militares ou outros especialistas, do sexo masculino. A guerra da Ucrânia operou uma mudança, trazendo mulheres com saber e competência para comentar o conflito. Tem sido um outro olhar sobre a guerra. De uma vez por todas, é altura de tirar estas “burcas” invisíveis que ainda impendem sobre as mulheres, muitas delas provenientes da academia.
Como comentadora residente da CNN Portugal, é presença assídua na análise à guerra da Ucrânia. Admite que o arrastar do conflito poderá gerar fadiga nas opiniões públicas ocidentais, favorecendo os russos?
Importa sublinhar que as guerras são, por tradição, fenómenos lentos. Vivemos numa sociedade hipermediatizada, em que se espera que tudo tenha um ritmo demasiado rápido. O facto de este ser um conflito acompanhado ao segundo nos meios de comunicação social e nas redes sociais faz com que surja um sentido de urgência. A contraofensiva ucraniana não irá acelerar o desenrolar do conflito. Nota-se, de facto, algum cansaço das opiniões públicas, mas temos de ultrapassar o lado mais egoísta e imaginar o que diariamente sofrem as populações ucranianas. O que parece inabalável é o apoio militar e económico dos países ocidentais à Ucrânia. O risco que existe é que, em 2024, com a eventual vitória de Donald Trump, a posição norte-americana face ao conflito possa ser alterada.
As suas causas são conhecidas, assumindo-se como uma intransigente feminista. Como está o vigor desta causa, em Portugal, nos dias de hoje?
Todos nós somos feministas. Por isto: ser feminista é acreditar no primado do Direito, no respeitar daquilo que está consagrado na Lei e na Constituição portuguesa, que é a igualdade entre homens e mulheres. O que eu defendo, e que está longe de ser alcançado, é a igualdade de oportunidades, na prática. Não chega ter a igualdade no papel. O país tem evoluído, mas há ainda um percurso a fazer. Nas empresas, as chefias intermédias já vão tendo mulheres, mas nas funções de liderança e tomada de decisões, os homens continuam em esmagadora maioria. Portugal vai cumprir 50 anos de democracia em 2024 e nunca teve uma mulher como Presidente da República. Tivemos uma primeira-ministra, Maria de Lurdes Pintassilgo. Identifico-me com um feminismo que faz pontes e que conta com os homens, não os exclui. Repare que a igualdade traz benefícios às mulheres, mas também traz para os homens. Eles já podem usufruir da licença paternal, nas mesmas condições das mulheres, já podem sair do emprego mais cedo para ir tratar de uma situação com um filho, etc. O feminismo importa para as mulheres, mas também importa para a libertação dos homens.
A Lei da Paridade permitiu assegurar a representação mínima de 33 por cento de cada um dos sexos em cargos políticos nacionais e no Parlamento Europeu. Este objetivo imposto pela via legal não devia antes ter sido alcançado pelo amadurecimento dos valores da igualdade?
Num mundo ideal o mecanismo da quota não devia ter sido empregue, mas o problema é que não vivemos num mundo ideal. Recordo que o uso do cinto de segurança de forma obrigatória foi por imposição legal. E lembro-me que a resistência foi muita. O deixar de fumar também aconteceu por imposição legal. Nos países nórdicos, porventura os mais avançados em matéria de igualdade de género, também se começou com a implementação de quotas. Com o passar dos anos, a situação normalizou-se e agora está perfeitamente consolidada. Esperemos que esta normalização acabe por cá chegar, também.
Apesar dos progressos, a desigualdade com base no sexo ainda é um “handicap” do nosso sistema democrático?
O país cresceu, evoluiu e amadureceu muito. Atualmente, há mulheres por todo o lado. Mas há resquícios de sexismo que ainda não foram ultrapassados. Quero recordar que se gerou uma enorme gritaria quando se criminalizou o piropo. Alguns homens achavam que tinham o direito de incomodar uma mulher, fazendo alusões de cariz sexual. Ainda há muito machismo internalizado que tem de ser desconstruído, mas considero que a sociedade tem evoluído e faço votos para que siga nesse rumo até termos uma igualdade plena.
Merkel, von der Leyen, Lagarde e Metsola, são mulheres que exerceram ou exercem cargos decisórios de topo. Como seria um mundo dominado, do ponto de vista político, por mulheres?
Não gosto da palavra «dominado». Acredito, sobretudo, no equilíbrio, na paridade e no diálogo. As mulheres que referiu foram todas muito importantes. Angela Merkel esteve 16 anos no poder e o seu exemplo foi extremamente importante para toda uma geração de raparigas se chegarem à frente e evoluírem na política. O governo que lhe sucedeu, liderado pelos social-democratas, do chanceler Olaf Scholz, é absolutamente paritário. Quero recordar que só muito recentemente, desde 2022, é que Portugal teve uma mulher ministra da Defesa, a professora Helena Carreiras. Por isso, se me permite, gostaria de substituir a palavra um mundo «dominado» por mulheres, por um mundo preocupado com esta metade da humanidade que é o sexo feminino. É preciso termos mais mulheres, na ciência e em processo decisórios, de maior ou menor complexidade, sobre temáticas em que têm mais sensibilidade e relativamente às quais um homem não prestará grande atenção. Estamos a falar de justiça e de direitos. E dou-lhe dois exemplos: há países onde as meninas e as mulheres não vão à escola quando estão menstruadas e por não terem como fazer a sua higiene íntima. Havendo mais mulheres em cargos de poder, esta medida seria, certamente, mais generalizada. Outro caso: Até há pouco tempo, os testes de segurança nos automóveis, eram feitos por “dummies”, que eram pensados à imagem do corpo masculino. O que significava que em caso de acidente uma mulher teria mais possibilidades de morrer ou ficar seriamente ferida em comparação com um homem. Em suma, a importância de ter mulheres em centros de poder é decisiva para poder vigiar, acautelar e pensar em questões que afetam o sexo feminino.
Os casos de assédio moral e sexual recentemente divulgados, nomeadamente no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vão contribuir para acabar com a síndrome do silêncio das vítimas?
A síndrome do silêncio está, felizmente, a esbater-se. A questão do assédio, quer moral, quer sexual, está cada vez mais presente nas empresas, nas instituições, nas universidades, etc. Os casos agora expostos eram há muito tema de conversa, mas existia muito receio em fazer a denúncia. Porquê? Porque se continua a duvidar da palavra das vítimas. Isto apesar de todos os estudos apontarem que é manifestamente residual o número de queixas falsas, cerca de 3 por cento. Também aqui quero sublinhar a evolução que se tem registado. Sem esquecer uma palavra para algumas das corajosas vítimas que se juntaram e fizeram as denúncias. A sociedade durante muitos anos foi conivente com este e outros tipos de abusos, mas, felizmente, emergiu uma maturidade social que faz com que este tipo de comportamentos não seja tolerado. A criação de mecanismos de denúncia é outro aspeto francamente importante para a divulgação de casos de abusos, mas agora é preciso que estas situações tenham consequências e tal, como acontece noutros países, sejam levados muito a sério.
Defende a criação de comissões independentes, como houve, recentemente, no caso dos abusos na Igreja Católica?
Acho que seria importantíssimo replicar esse paradigma noutras entidades. Desde que, naturalmente, os elementos dessa comissão não tenham qualquer dependência económica e laboral das instituições que estão a confrontar ou a investigar para que os resultados sejam fidedignos. Os casos de pedofilia na Igreja eram conhecidos e murmurados, mas não existia um trabalho académico sério e que foi feito pela comissão independente. Por isso, a criação destas comissões independentes é fundamental para, posteriormente, se fazer a reparação e o apoio às vítimas.
Em 2020 foi uma das impulsionadoras do manifesto "Cidadania e desenvolvimento: a cidadania não é uma opção", um documento em defesa das aulas de Educação para a Cidadania e Desenvolvimento. A educação para a cidadania é um trabalho de base, com origem na família e complementado pela escola?
À época, esta discussão foi inquinada porque se tentou passar a mensagem que a educação para a cidadania era uma educação sexual (que contínua a ser um bicho papão) ou uma educação para a ideologia de género. Contudo, a educação para a cidadania continua a não ser uma opção e deveria ser muito bem trabalhada nas escolas. A educação para a cidadania é um complemento disciplinar que engloba várias temáticas, que vão desde o ambiente, a educação sexual, a literacia económica, a democracia, etc. Por isso, constata-se que nas escolas portuguesas há escassa educação política e são muitos os alunos que desconhecem, por completo, como funciona o sistema democrático do seu próprio país. O que é isto de ser cidadão? Tenho só direitos? Quais são os meus deveres? Mas há mais temas: a questão da sustentabilidade que se assume como central nas nossas sociedades, a igualdade de direitos, as liberdades e as garantias, a responsabilidade social, etc. No fundo, pretender que os jovens sejam cidadãos de pleno direito, mas compreendendo o que isso significa. A escola não se substitui, de maneira alguma, à família, mas tem aqui um papel interventivo em termos de espaço de promoção para a cidadania que não pode ser negligenciado.
A CARA DA NOTÍCIA
Ativista dos direitos humanos e feminista
Nascida em Bissau, cresceu em Lisboa e, depois de terminar a faculdade, acabou por fixar-se em Bona, na Alemanha, onde trabalhou como jornalista e correspondente ao longo de duas décadas. Como pivô e repórter, tem uma vasta experiência em cenários de crise e guerra. Foi jornalista do “Público” durante mais de uma década, tendo sido correspondente na Alemanha, e da “Deutsche Welle”. Há muito que é uma reconhecida ativista pelas bandeiras dos direitos humanos e o feminismo. Especialista em comunicação, é analista de assuntos internacionais e comentadora residente na CNN Portugal. Para além de consultora, foi ainda gestora de projetos internacionais de cooperação e desenvolvimento, envolvendo refugiados e outras vítimas de trauma. Trabalhou em mais de 50 países. Ajudou a desenvolver a Rede Notícias da Amazónia, no Brasil, a Cepra, rede de rádios dos povos indígenas da Bolívia e diversas rádios locais em Chittagong e Dakha, no Bangladesh. Foi docente de jornalismo na Argentina, Bolívia, Brasil, Moçambique, Timor, Guiné-Bissau, Gana, Uganda, Sudão do Sul, entre outros países. Foi também docente no campo de refugiados de Kakuma, no Quénia. Helena Ferro Gouveia é licenciada em Ciências da Comunicação pela UNL- FCSH, pós-graduada em Direito da Comunicação pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e mestre em Liderança pela Academia Militar.