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Entrevista Eduardo Lourenço: "É prioritário obter resultados nas ciências exactas"

18-09-2023

No ano do centenário do nascimento de Eduardo Lourenço, recuperamos a entrevista que o pensador e filósofo português nos concedeu em julho de 2007.

O autor do “Labirinto da Saudade”, que faleceu no final de 2020, com 97 anos, defendia que o Estado deve incentivar e privilegiar os candidatos aos cursos de ciências exactas, como forma de criar elites em domínios onde existem lacunas.

Eduardo Lourenço critica o sentimento de “espera” latente nos portugueses e afirma que falta um projecto colectivo mobilizador ao país. O ensaísta culpa a Europa pela actual dimensão do imperialismo americano e acusa o presidente Bush de “construir” o 11-S “ao melhor estilo do cinema de Hollywood”. Sobre a revolução digital, diz que inaugurou “outro” mundo e dividiu o universo em “informados e info-excluídos”. 

Estamos a gravar a entrevista no dia 10 de Junho de 2007. O professor vive em França, mas vem com muita regularidade a Portugal. Como é que observa o país, actualmente, à luz da integração europeia?
Portugal e os portugueses vivem num esquema europeu e o próprio “Velho Continente” está envolvido num ciclo mais vasto, que é global. As distâncias inter-europeias são menores, tanto fisicamente como simbolicamente. Logo, é através da perspectiva europeia que os portugueses vão resolvendo os seus problemas. E é preciso não esquecer que os efeitos dessa nova proximidade são enormes.
 

Esta integração europeia consegue atenuar o sentimento de crise latente?
Portugal é um dos espaços públicos menos problemáticos na cena europeia, mas está acometido por uma sensação de espera directamente decorrente do impasse em que se encontra o projecto europeu. A Europa está politicamente suspensa e seria desejável que retomasse rapidamente a sua marcha. Espero francamente que os 6 meses da presidência portuguesa da União Europeia sejam profícuos, para evitar este estado de imobilismo do processo europeu, orientado o rumo no sentido da construção.
 

A nível interno não acha que o sentimento de espermismo nunca nos abandonou desde a batalha de Alcácer-Quibir?
Sim, esse sentimento está muito presente. A vida política tem as suas normas próprias. Aqui em Lisboa estamos na véspera de eleições e não se nota um interesse especial por este acto eleitoral fundamental. Era bom que os cidadãos da capital do país se mobilizassem para escolher os que vão liderar os destinos desta cidade.
 

O poder político tem feito tudo o que está ao seu alcance para inverter a tendência de crise?
O programa deste governo foi alicerçado na preocupação de Portugal não se atrasar relativamente aos parceiros europeus. O problema do défice é um tremendo “handicap” que não é de agora, é de sempre.
 

O défice é a raiz de todo o mal?
O problema é mais fundo. Portugal não tem neste momento um projecto colectivo mobilizador. Não quer dizer que ele não exista, na teoria, mas, pelo menos, não está em marcha. E o governo pode ter pecado por não ter explicitado de forma visível esse projecto. Por isso, a opinião pública aguarda e espera por um acontecimento que a mobilize. Enquanto isso, permanece na expectativa.
 

É essa passividade que nos vai matando aos poucos?
Há alturas em que os países parece que estão parados e, de um momento para o outro, tudo se altera. Veja o que aconteceu nas presidenciais francesas quando, do dia para a noite, se alterou a ideia, que a Europa em geral tinha, que a sociedade gaulesa estava em declínio e de costas voltadas para os problemas do seu país. Mais de três quartos da população foi a votos. Isso remobilizou toda uma nação e a França emerge, de novo, plenamente consciente das suas responsabilidades enquanto nação europeia. É evidente que Portugal não tem a força e o ânimo que a França demonstrou, mas tem a sua palavra a dizer em matéria de construção europeia. Os próximos 6 meses poderão ser decisivos para o projecto e também para a nossa imagem.
 

No seu livro mais conhecido, “O Labirinto da Saudade”, diz que não se aproveitou o fim do império colonial para repensar Portugal. Está por realizar esse exercício de reflexão?
Muitas vezes pensamos que as grandes questões que nos atormentam se resolvem por si mesmas. Muitos esquecem, que de um dia para o outro perdemos um império com 500 anos de existência e foi durante esse período que se desenhou o horizonte normal da inscrição do nosso povo no mundo. Quando o império se esfumou, ficámos reduzidos à nossa porção europeia e ao capital de memória como país colonialista.
 

Quer dizer que o fim do império não foi psicologicamente ultrapassado pelo colectivo?
O fim do império significou um traumatismo natural. Fizemos luto, embora silencioso, durante a própria guerra colonial, que foi, em si mesma, um absurdo. Ficar livre desse pesadelo histórico, que foi a guerra, não deixou ninguém indiferente. Quando os colonizados tomaram consciência da sua situação e reivindicaram a sua autonomia, Portugal entrou em contradição profunda consigo próprio. Mas é bom notar que não fomos o único país da Europa que não resolveu positivamente o seu trauma colonial. Estamos a pagar as contas normais de todas as colonizações que, ao contrário do que se possa pensar, não são eternas. O caso da França relativamente à Argélia, por exemplo, e comparativamente com Portugal, foi extremamente traumático, pois os gauleses sempre pensaram que esta colónia lhes iria pertencer para sempre.
 

O 25 de Abril correspondeu a um marco de viragem e de esperança. 33 anos depois somos um dos países que mais desigualdades apresenta. Não acha isto incongruente face aos objectivos fundadores da revolução de 1974?
Essa leitura é parcialmente verdadeira. A perspectiva revolucionária significou uma viragem que durou 1 ano, não mais. O que se passou foi o seguinte: Portugal viveu a aurora revolucionária em 1974 num momento que coincidiu com a crise de um longo ciclo revolucionário moderno que tinha sido inaugurado pelo movimento bolchevique em 1917 e que teria o seu epílogo com a implosão do império soviético e a queda do Muro de Berlim.

Seria desejável que o ideário que acabou por triunfar, tivesse deixado traços e exigências mais fortes no que diz respeito às conquistas e garantias no âmbito das igualdades sociais.
 

Foi a conjuntura internacional a impedi-lo?
Uma nação tão pequena como a nossa, não podia escapar à onda vertiginosa de neo-liberalismo à qual, aliás, nenhum país consegue escapar. As perspectivas utópicas revolucionárias de hoje em dia só podem ser cultivadas por países que ainda não atingiram níveis democráticos mínimos.

Nestes 30 anos, Portugal reajustou-se a si mesmo, depois do interregno de um longo regime não democrático de quatro décadas.
 

A maioria dos cidadãos elegeu Salazar como o maior português. Tratou-se de um concurso irrelevante ou assistimos a uma manifestação de saudosismo de (alguns) portugueses?
As pessoas não atribuíram a esse concurso o interesse político devido e reduziram o episódio a uma espécie de jogo. Creio que estamos perante um fenómeno mais importante do que muitos julgam. E pela negativa.
 

Atribui estes resultado a uma mobilização espontânea ou concertada?
Houve uma mobilização de pessoas, planeada ou não, que entenderam que Salazar foi a figura mais importante de sempre. É verdade que já antes se tinha dito que o antigo Presidente do Conselho tinha sido o português do século XX, o que me parece incontestável, mas neste caso estávamos perante a análise de toda a História de Portugal.
 

Encontra explicação para o facto de o seu amigo Mário Soares não figurar nos 10 primeiros lugares?
Os portugueses não têm perspectiva histórica temporal vivida para estar a julgar personagens de época distintas e recuadas no tempo e mesmo outras que lhes são mais familiares, por estarem mais próximas cronologicamente. A Cultura, a Literatura e o Ensino português, não dão uma atenção tão forte às personalidades mais antigas da nossa História.

Salazar, quer se simpatize com ele ou o odeie, é uma personalidade conhecida, mas beneficiou de estar próximo da memória dos portugueses. Os que votaram em Salazar consideram um acto de justiça para o esquecimento a que votaram o ditador. Por seu turno, os adversários do Estado Novo - não se deram por vencidos e desvalorizaram uma vitória póstuma do salazarismo. Nesta perspectiva, o país dividiu-se.
 

Regressando à actualidade, como interpreta que as figuras simbólicas do Portugal moderno estejam ligadas ao futebol, casos de Cristiano Ronaldo e José Mourinho?
Vivemos na sociedade do espectáculo e da publicidade em que vender imagens é a preocupação quotidiana. O grau de celebridade dos nossos treinadores e jogadores é doméstico, europeu e mundial. Mas acho que esta projecção representa uma mais-valia para nós. O Brasil tem os seus jogadores espalhados por todo o mundo, que são estrelas de primeira grandeza neste domínio. Mas, como país de uma dimensão e riqueza inigualável, nem precisa de publicidade. Nós, pelo contrário, estamos bem carenciados de alguma promoção...
 

Voltamos aos assuntos de política europeia. Pensa que Sarkozy e Merkl, o mesmo é dizer o tandem Paris-Berlim, vai conseguir libertar a Europa da encruzilhada e revitalizar o tratado constitucional?
Acredito que sim. Sarkozy está a dar mostras de dinamismo e penso que pode entender-se com Merkl. A Europa actual está inclinada para uma onda mais próxima das apostas políticas globais do novo presidente gaulês.
 

Acredita, como o escritor francês Vitor Hugo pressagiou, que teremos algum dia «os Estados Unidos da Europa que coroarão o Velho Mundo da mesma forma que os EUA coroam o mundo novo»?
Possível é, mas só ao fim de muitos anos. Nem daqui a 100 anos teremos uma Europa federal, os tais Estados Unidos da Europa. A menos que estale um grande conflito no “Velho Continente”. A Europa inventou um conceito muito particular de nação e essa dimensão que fala é um cenário limite, já que não há, até ver, outra expressão política tão auto-reguladora e tão eficaz. Como a Europa é um conjunto de nações, não sente qualquer necessidade de ultrapassar a dimensão que tem, ou seja ser uma super-nação.
 

A Europa tem condições para ser uma super-nação?
Uma super-nação pressupõe uma nação que federa as outras e a história europeia é feita de milhares de anos e feita também de inúmeros exemplos que contradizem esse conceito. Cada uma das grandes nações europeias, a Espanha, a França, a Alemanha, a Rússia, tentou ser Europa e nenhuma conseguiu. Isto é um sonho do Império Romano e que não cobria propriamente todo o espaço europeu. O paradigma de uma Europa federal do ponto de vista militar, financeiro e político, parece-me inviável.
 

As resistências dos países escandinavos, a recusa da Inglaterra em aderir ao euro e do «não» em França e Holanda ao Tratado, são sinais de uma Europa dividida?
Evidentemente. Por exemplo, a Inglaterra nunca se reviu em qualquer outra coisa que a subordinasse. Ela foi o primeiro império moderno de âmbito universal durante quase 150 anos.
 

Como será o futuro da Europa, partindo do princípio que não haverá nenhum conflito fracturante?
Um processo longo e uma coexistência de nações, salvaguardando as identidades culturais.
 

Não é propriamente um adepto da administração republicana. Que legado deixa Bush quando abandonar a Casa Branca, no final de 2008?
Este não foi um mandato tradicional. O 11 de Setembro transformou toda a visão e a prática da política americana. George W. Bush entendeu que o ataque às “Torres Gémeas” seria uma oportunidade única de os americanos expandirem, a níveis nunca vistos, o seu imperialismo. Os europeus contribuíram, ouso dizer que foram os grandes culpados, para os americanos terem vestido esse manto imperialista.
 

O facto de os americanos serem considerados os “polícias do mundo” é responsabilidade da Europa?
A culpa do imperialismo americano é de toda a Europa. Fomos nós que chamámos os americanos para que nos defendessem na I Guerra Mundial e, na II Guerra, nem se fala.

Estão a celebrar-se os 60 anos do Plano Marshall, período em que a Europa atravessou um estado de impotência política, económica, financeira e organizacional e essa ajuda foi uma espécie de auxílio de um pai que quando vai arrumar a casa do filho, acaba por lá ficar.
 

Não está a revelar algum anti-americanismo?
Estou bem longe de ser um anti-americano, sou é bastante crítico do comportamento da Europa durante praticamente todo o século XX: a Europa revelou uma postura suicidária durante as sucessivas lutas intestinas que atravessou. Esteve à beira da auto-destruição nos dois conflitos mundiais e, passado esse momento apocalíptico, recuperou, fruto do Plano Marshal, reorganizou-se face à ameaça soviética, por um lado, e , por outro, encetou o processo de construção europeia. Por isso, se a Europa e os europeus têm de se queixar de alguém, é deles próprios.
 

O Iraque é comparado por muitos analistas a um enorme “vespeiro” que os americanos foram desafiar. Vê fim à vista para um conflito que muitos comparam ao Vietname?
O Iraque é, num certo sentido, pior para os americanos, comparativamente com o Vietname. O Vietname estava inscrito na lógica do confronto da guerra fria. Os americanos também foram para o Vietname pela incapacidade da França em resolver os problemas da Indochina. Nesse sentido, a lógica imperialista americana fazia algum sentido, na contenda entre dois impérios. No caso actual, o imperialismo ostentado pelos americanos no Iraque é grosseiro e desnecessário. Eles são tão fortes que não precisam de este tipo de demonstração do seu poderio.

Se se confirmar que a motivação da guerra do Iraque é a cobiça pelas grandes fontes de petróleo naquela zona do Globo, então estamos perante o imperialismo indigno e do mais baixo estofo do país que é o representante da democracia ocidental.
 

Uma vitória do partido democrata nas presidenciais de 2008 nos EUA pode significar um novo relacionamento entre Washington e a Europa?
Cada vez que a presidência da Casa Branca muda, a relação com o “Velho Continente” também se altera, ganhe o partido republicano ou democrata.
 

A dinastia Bush na presidência americana pode ter sequência?
O caso Bush está encerrado. Não haverá um Bush III. A actual administração já suavizou o seu comportamento. Uma coisa é certa: já não é possível continuar na lógica do 11 de Setembro. Está esgotada. O atentado não foi inventado, mas a sua leitura foi adulterada e a chantagem feita ao resto do mundo, como que se pairasse uma ameaça apocalíptica sobre o EUA, foi inadmissível. O 11-S foi construído voluntariamente pela administração Bush ao melhor estilo do cinema de Hollywood.
 

O ensino é sempre um sector com muita turbulência. Os investimentos não geram os resultados práticos consequentes. Encontra motivos?
Será verdade? Tenho as minhas dúvidas. Mas a verdade é que Portugal sempre teve um grande handicap em termos educacionais e andámos permanentemente a reboque dos diversos progressos que se faziam nos outros países europeus, que nós tomámos por modelo. Mas lentamente, fomos acompanhando, o que se fazia. Mas, é um facto, mantemo-nos distanciados dos países mais dinâmicos nesse domínio.
 

Teríamos a ganhar se perfilhássemos o «modelo irlandês»?
Para começar, acho que é prioritário obter resultados no domínio das ciências exactas em detrimento do saber cultural puro e humanístico. De pouco vale ter muitos milhares de formados em História. Se investíssemos em cursos e nas disciplinas relacionadas com as ciências exactas, menos procuradas pelos estudantes, provavelmente os resultados globais do ensino seriam melhores.
 

Defende algum tipo de incentivos aos que sigam essas áreas?
Penso que devem ser concedidos privilégios e incentivos aos que optem por enveredar pelos caminhos mais difíceis e menos procurados. Saber mais literatura ou poesia, em suma matérias sobre humanismo e cultura, é saudável para o aperfeiçoamento pessoal, mas pouco aporta para as necessidades reais e quotidianas de um país. Faço um apelo para que se promovam cursos de ciências exactas, onde temos imensas carências, em detrimento do cursos de “caneta e papel”, actualmente em maioria. Para ter elites nesses domínios é preciso fazer algo e o papel cabe ao Estado e aos estabelecimentos de ensino.
 

A Internet e a web 2.0. são realidades indiscutíveis que roubam, todos os dias, terreno aos jornais, à rádio e, também, à televisão. Como caracteriza esta vertiginosa era dos blogues, do You Tube, do Hi5 e do Second Life?
Estamos perante meios de informação, no sentido lato do termo, completamente novos . É uma revolução que já começou e com consequências incalculáveis. Mudámos de paradigma e eu diria mesmo que já estamos “noutro mundo”. Eu, por ser de outra geração, estou fora desse “mundo”. Preocupa-me o excesso de informação disponível e, de futuro, o segredo residirá na capacidade de gerir esta funcionalidade e evitar os perigos e malefícios que ela encerra, como a pedofilia, etc. Estou em crer que o controlo será decisivo.
 

Como é que a actual geração deve lidar com estes meios?
A utilização destes meios vai colocar problemas específicos. A utilização é, para já, passiva. Mas o salto será dado na quantidade de informação difundida. O período actual que vivemos só é comparável, observando outras rupturas do passado, com a invenção da imprensa por Gutenberg, que dividiu a Humanidade em duas: os que lêem e os que não sabem ler. Agora, o combate é travado entre os informados e os info-excluídos.

Nuno Dias da Silva | 2007
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