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Cândida Pinto, jornalista ‘Os ucranianos jogam nesta guerra a sua identidade’

20-03-2023

Cândida Pinto é uma referência, com mais de 30 anos de carreira, na cobertura jornalística de conflitos um pouco por todo o mundo. A guerra na Ucrânia foi o mais recente desafio para a repórter da RTP, na companhia do operador de imagem, David Araújo.

Na noite de 23 de fevereiro de 2022, num hotel em Kiev, recebe mensagens de fontes diplomáticas que a alertam que o conflito está iminente. Acreditou, até ao último momento, que a guerra podia ser evitada?

A iminência do início do conflito já tinha sido anunciada várias vezes, sobretudo, pelos Estados Unidos, que inclusive chegaram a avançar com várias datas. Por outro lado, em Kiev, quase todas as pessoas - desde o cidadão comum, passando por professores universitários, comentadores e quadros da administração - achavam pouco provável uma invasão em larga escala. Apostavam mais numa ação militar forte, mas concentrada no leste da Ucrânia. Estavam longe de admitir, por exemplo, que a capital, Kiev, fosse um alvo prioritário ou que a utilização dos mísseis fosse tão frequente como acabou por suceder nos primeiros dias.

Poucas horas antes dos primeiros bombardeamentos, o bulício de Kiev assemelhava-se ao de uma qualquer grande capital europeia?

Na véspera do dia 24 de fevereiro de 2022 Kiev era uma cidade completamente normal. As pessoas iam para o trabalho, os restaurantes estavam em pleno funcionamento.  Talvez com algum nervosismo, por haver notícias de muitos ciberataques, sobretudo às instituições públicas, o que levou ao decretar do estado de emergência. Mas não havia indícios que as coisas pudessem mudar num par de horas.

O livro que agora lançou, com o seu colega de trabalho, o repórter de imagem David Araújo, chama-se «Ucrânia insubmissa» e assinala um ano de conflito. São 27 episódios em que relata histórias de militares e de civis. Este livro é um tributo a um povo que não se vergou?

Sim, os ucranianos são um povo que joga nesta guerra a sua identidade. É um bocado isso que nós sentimos. As pessoas defendem que se não tiverem todas unidas e a lutarem em rede acabarão subjugadas por um poder e uma organização política e social que frontalmente rejeitam. É preciso compreender o seguinte: a Ucrânia é um país muito jovem, sendo apenas independente desde 1991. Sobretudo a partir de 2014 encetou um caminho muito voltado para a Europa ocidental. E é nesse rumo que pretende progredir. Por isso, quando se sente ameaçada por uma potência muito maior e com um poder militar muito superior, rejeita essa subjugação por um poder que não reconhece como sendo de uma democracia ocidental. Nesta vertente, o povo ucraniano tem as suas ideias muito bem definidas. Mas é preciso não esquecer que, à margem da guerra, a sociedade ucraniana se debate com problemas bastante sérios, como a corrupção, as desigualdades, a pobreza, etc.

«Putin uniu-nos» é uma declaração de um popular que se pode ler no livro. A guerra desencadeada pelo presidente russo deu a coesão que faltava à sociedade ucraniana?

É um paradoxo. Putin lançou a operação militar especial, mas, na verdade, nunca houve, até hoje, uma declaração oficial de guerra. E o que acabou por acontecer é que regiões, com características diferentes, acabaram por se unir. Para além disso, as investidas dos russos através de ataques aéreos e de artilharia visaram particularmente as populações civis, o que acabou por reforçar o povo ucraniano em torno de um interesse comum: a unidade do Estado e a identidade da nação.

Todos nos recordamos que nos primeiros dias do conflito falava-se de um cerco a Kiev. Quais destes fatores pesaram para a inversão desta tendência: a agilidade do exército ucraniano, o apoio do ocidente ou a sobranceria russa?

Há uma conjugação de fatores: no início do conflito a Ucrânia ainda não tinha o apoio militar que recebeu posteriormente. Ou seja, estava sozinha em termos de equipamento militar e de tropas. Também é verdade que o exército ucraniano já acumulava oito ou nove anos de experiência na guerra no Donbass. A sobranceria e o convencimento das forças russas também pesaram. Eles julgavam que os seus métodos tradicionais de infantaria e ataques aéreos seriam suficientes, mas não contavam com a agilidade demonstrada pelo exército ucraniano, que se mobilizou e concentrou em pontos nevrálgicos para travar a progressão do inimigo, não hesitando mesmo em destruir vias de comunicação. A colaboração em rede entre os militares e os próprios civis, na transmissão de informação, foi outro fator determinante para que Kiev ficasse a salvo.

Já cobriu muitos conflitos e até diz que o Paquistão é o país mais perigoso do mundo. A guerra da Ucrânia foi, até ao momento, a experiência profissional mais intensa que viveu na sua carreira?

É difícil comparar conflitos porque as circunstâncias são sempre diferentes. Mas a guerra da Ucrânia é, definitivamente, uma experiência diferente e, seguramente, uma das mais singulares que já acompanhei. É uma experiência muito forte e particularmente marcante estar num território invadido por uma potência com um poder, a todos os níveis, infinitamente superior, sem saber se os ucranianos iriam sobreviver a esta invasão de larga escala. Este é um conflito com uma enorme diversidade de imponderáveis e que nada tem a ver, por exemplo, com uma guerra civil. Estive na invasão norte-americana do Iraque, mas nessa ocasião estava do lado dos invasores, ou seja, da NATO. Aqui estávamos do lado dos invadidos e de um país que não iniciou a guerra, nem deu qualquer pretexto para que o conflito se tivesse desencadeado. Este era um conflito rejeitado à partida.

Descreve, com especial dramatismo, o silvo dos mísseis a passar a baixa altitude, próximo de si e do David Araújo. Foi o momento mais perigoso? Chegaram a temer pela vida?

Olhando para a situação agora, nós não estávamos em perigo iminente de ser atingidos por aquele míssil. Quando ouvimos o silvo de um míssil, quando está muito próximo é um estrondo aterrador. Mas não significa um perigo imediato. Porquê? Se o estamos a ouvir, significa que ele não nos vai atingir, porque já passou por nós.  Mas é óbvio que esta conclusão só se tira muito posteriormente. Mas não escondo que esta situação envolve uma carga de surpresa, medo e sobressalto muito fortes. É a nossa sobrevivência que pensamos estar em causa.

O refúgio nos “bunkers” e o atravessar de múltiplos “checkpoints” fizeram parte do dia a dia das primeiras semanas de guerra, mas as sirenes que alertavam para bombardeamentos iminentes é sempre algo impactante, mesmo para quem segue os acontecimentos através da televisão. É um momento de grande nervosismo ou acaba, com o tempo, por ser normalizado?

O som da sirene que alerta para possível ataque aéreo é algo que mexe sempre connosco e, sempre que soa, causa um arrepio. Mas o facto de se tornarem muito frequentes diminui a nossa reação e, de alguma forma, acabamos por nos habituar.

A rede de apoio no terreno é fundamental para qualquer repórter de guerra. Os “fixers”, assim são chamados, podem ser tradutores, motoristas ou produtores. Qual é a sua importância para o trabalho num país em conflito e onde se fala uma língua desconhecida?

Estas pessoas são elementos essenciais para o nosso trabalho, não apenas por causa da língua, mas em particular pela geografia, o conhecimento do terreno e, finalmente, pelo contexto de guerra. Normalmente, os serviços de um “fixer” são contratados através do boca-a-boca, por recomendação de alguém que conhecemos. O Ilya (Kononov) foi-me recomendado por um ucraniano que vive em Lisboa. Posteriormente, através de um colega conheci o Andrii (Kovalenko), que sim, era jornalista de profissão. Como as zonas sob maior perigo não estão indicadas, eles são muito úteis nas deslocações que fazemos, visto que o trajeto que procuramos no Google ou noutra ferramenta vai direcionar-nos para uma zona que pode estar sob fogo. Os “fixers” ajudam a contornar esses locais mais perigosos, para assim chegarmos ao destino pretendido. Para além disso, um “fixer” ajuda a desbloquear a passagem em determinados “checkpoints”. Nestes locais é expressamente proibido filmar ou fotografar militares ou áreas militares, sem o acordo dessas pessoas, por motivos de segurança.

Mas os militares nos “checkpoints” frequentemente testavam os argumentos dos ucranianos que vos acompanhavam...

Sim, isso aconteceu a partir de uma determinada altura. Começavam a fazer muitas perguntas ao “fixer” para despistar a possibilidade de este poder ser um agente infiltrado que nos acompanhava.

A massificação da internet, as redes sociais e as poderosas máquinas de propaganda russa e ucraniana fazem deste um conflito distinto dos que já cobriu?

É totalmente diferente. A evolução, sobretudo ao nível tecnológico, tem sido tremenda ao longo dos anos. Hoje em dia, transportamos menos peso connosco, os computadores são mais ágeis. A rede “wi-fi” é fundamental para podermos contactar com Lisboa. É uma ferramenta acessível de uma forma mais ou menos generalizada, mas há sítios - especialmente os que foram completamente destruídos - onde deixam de existir comunicações. De alguma forma, é um regresso à «Idade da Pedra».

E qual é a influência das máquinas de propaganda no trabalho de um repórter de guerra?

São ambas (a russa e a ucraniana) poderosíssimas. Nem os ucranianos nem os russos divulgam os dados oficiais de mortos ou dos feridos. Sobretudo, militares. É um tabu e que tem a ver com a motivação e a mobilização da população para manter a resistência perante este conflito. Seria, certamente, para ambos os lados, altamente desmoralizador conhecer a estatística das vítimas, que deve ser astronómica. Porventura, mesmo que fossem divulgados os números pecariam por defeito. Por exemplo, A cidade de Bakhmut é palco do conflito há sete meses. Já se fala, inclusive, que a Rússia está a usar crematórios móveis nalgumas regiões. O que a ser verdade, faz com que a identidade de muitas das vítimas se perca. Já para não falar dos civis que são depositados em valas comuns em zonas inacessíveis. É uma contabilidade macabra que vai demorar muito tempo a ser concretizada, de forma aproximada ou real.

Regra geral, numa guerra não há bons e maus, mas esta tem um agressor identificado que iniciou as hostilidades. Diz que «nunca somos imparciais».  Perante isto, estar mais próximo da verdade é o principal compromisso do repórter em cenário de guerra?

Mais do que nunca sermos imparciais, nunca somos objetivos. Nós somos a formação e os valores que transportamos e é essa base que vai condicionar a leitura dos acontecimentos. O exercício do jornalista terá de ser o de fazer a maior aproximação possível à verdade dos factos, procurar testemunhos que não estejam contaminados e que sejam o mais transparentes possíveis. Achei um exagero quando ouvi a descrição das atrocidades em Bucha. Foi a minha primeira reação. Depois de ir ao terreno e recolher testemunhos, cheguei à conclusão que era verdade, até porque vi vários corpos prostrados no chão. Isto prova que a aproximação à verdade dos factos é possível e que nada substitui um jornalista deslocar-se ao local dos acontecimentos. Nem mesmo o manancial de informação, sobretudo via internet, que nos chega hoje.  

No livro conta episódios com duas crianças, a Milana, de 7 anos, e o Vova, um menino de 12 anos, este último um sobrevivente que reencontraram meses depois na Polónia, em fase de recuperação dos ferimentos. Foi este último caso o mais tocante, talvez pelo Vova personificar o drama de milhares de crianças?

Em 2022, nos primeiros meses do conflito em larga escala, víamos muito poucas crianças em território ucraniano. Cada bairro na Ucrânia tem um parque infantil, mas estes estavam praticamente desertos. Recordo que existiu o apelo para que as mães saíssem com as crianças das zonas do conflito. As crianças com quem falámos, e alguns casos estão descritos no livro, estavam acompanhadas pelas próprias mães.  A Milana e o Vova sentiram na pele, de maneira diferente, as atrocidades da guerra. O caso do Vova é mais trágico:  viu morrer o pai à sua frente. Quando o encontrámos no hospital de Kiev ele falava imenso. Uns meses depois, já na Polónia, estava muito mais calado e o trauma já era mais notório. Quando falou do pai desatou num pranto e tivemos de parar a entrevista. A questão dos problemas de saúde mental neste país vai prolongar-se por muito tempo.

À história do casamento entre dois soldados ucranianos, a Anastasia e o Vaicheslav, a 7 de abril de 2022, deram o nome de «pausa para casar», mas podia ser, perfeitamente, «amor em tempos de guerra»…

Eu e o David Araújo soubemos deste casamento minutos antes e deslocamo-nos até lá a pé. E foi este o momento que escolhemos para a capa e que simboliza muito a Ucrânia insubmissa. Este casal de noivos, apesar de não abandonar os seus postos de combate, levam a sua vida para a frente, não se submetendo aos ditames da guerra. Eles partem para o casamento numa interrupção momentânea da guerra. Foi um ato de paz e de amor em pleno conflito.

Como é trabalhar para o canal público de televisão português e estar ombro com ombro com colegas que representam canais globais como a CNN, a Sky News ou a BBC? A disparidade de meios faz-se notar?

Não nos podemos esquecer que os órgãos que mencionou são cadeias de televisão planetárias, com uma abrangência à escala global. A cobertura diária é para o mundo inteiro. O investimento nestes grandes eventos é completamente distinto daquele que existe em Portugal. Não tem comparação. É a questão da escala que nos diferencia. Nós somos um pequeno país de 10 milhões de habitantes. A cobertura permanente e prolongada de uma guerra como esta implica um esforço financeiro descomunal e naturalmente o interesse e a recetividade por parte da audiência. As equipas das principais cadeias circulam com carros blindados e com equipas de segurança próprias. São preços exorbitantes. Nós não temos nada disso. Mas no essencial, ou seja, no olhar e na qualidade para se fazer um trabalho no terreno, creio que a diferença não é assim tanta.

Imagino que o acesso a informação privilegiada sobre o conflito por parte dos ucranianos ou a alguma entrevista relevante seja tarefa impossível?

Isso é uma dificuldade. Por exemplo, se houver uma troca de prisioneiros e fizermos o pedido para filmar esse momento, o acesso é primeiramente dado à CNN ou à BBC, porque sabem o impacto que a história vai ter.

E presumo que chegar ao presidente Zelensky seja a mesma coisa...

É a mesma coisa. Tivemos perto dele e chegámos, inclusive, a formular questões em conferências de imprensa. Mas não foi possível uma entrevista. Os pedidos são feitos, mas sem sucesso. As solicitações devem ser milhares. Lembro que desde que começou a guerra na Ucrânia estão credenciados 13 mil jornalistas. É muita gente. É normal que a própria presidência ucraniana faça a gestão para onde interessa dar entrevistas consoante o impacto esperado e desejado. E naturalmente que a ordem de preferência vá para meios com alcance planetário ou então para zonas do globo que são, naquele preciso momento, do interesse da Ucrânia passar determinada mensagem.

Nas várias deslocações que fez à Ucrânia no último ano esteve quase sempre acompanhada pelo repórter de imagem David Araújo. A cumplicidade e a química profissional são qualidades fundamentais?

Sem dúvida. A cumplicidade tem de ser óbvia. Todas as circunstâncias são difíceis e a equipa tem de atuar como se fosse um elemento único. Um bom conhecimento, entendimento mútuo e ter uma boa relação de trabalho são caraterísticas vitais para desenvolver um trabalho tão particular e em condições tão especiais. Muitas vezes, e concretamente em cenários de guerra é tão importante, basta um olhar para «falarmos» entre nós. E isso faz muita diferença.

O jornalismo encontra-se numa encruzilhada.  Como veterana desta profissão, acredita que, apesar da crise, a missão do jornalismo permanece intacta e que são acontecimentos como uma guerra com impacto global que reforçam o seu propósito?

O jornalismo é cada vez mais necessário à sociedade e é um garante de uma democracia saudável. Viver em democracia é termos liberdade de expressão e movimentos, segurança, mas só se dá o valor em situações onde isso não acontece. Felizmente em Portugal e noutras partes do globo isso verifica-se, mas não é assim em todos os cantos do mundo. A liberdade e a manutenção dos regimes democráticos não são óbvios em todo o planeta. E devem ser mais valorizados do que nunca, porque são como a nossa respiração. Sem a liberdade, sentimo-nos incompletos. E o jornalismo dá o seu contributo para regimes democráticos livres.

A CARA DA NOTÍCIA

Na fundação da primeira televisão privada

Cândida Pinto nasceu em Torres Vedras, a 21 de fevereiro de 1964. Desde cedo percebeu a carreira que queria seguir: jornalismo. E já lá vão mais de 30 anos. Fez a licenciatura em Comunicação Social no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP). Começou na rádio, na Antena 1 e na TSF, mas foi a televisão que lhe trouxe a notoriedade. Esteve na equipa fundadora do primeiro canal de televisão privada, a SIC, em 1992, onde foi repórter, editora de internacional e diretora da SIC-Notícias. No grupo de Pinto Balsemão exerceu ainda funções como diretora-adjunta do «Expresso». Especializou-se em grandes reportagens e em reportagens de guerra, tendo coberto conflitos, como Guiné (1998), Kosovo (1999), Afeganistão (2001), Timor (2001) ou Líbia (2011), entre muitos outros. A guerra na Ucrânia, que acompanhou o seu eclodir “in loco” a 24 de fevereiro de 2022, é o último conflito que soma ao seu vasto currículo.  Em 2018, transferiu-se para a RTP – onde estivera no início da carreira – onde assume o cargo de subdiretora de informação. Distinguida com diversos prémios, entre os quais, o Prémio Gazeta de Televisão, o Prémio AMI - Jornalismo contra a Indiferença e o Prémio Mário Mesquita da Sociedade Portuguesa de Autores. Depois de “Snu e a vida privada com Sá Carneiro”, em 2011, lança agora “Ucrânia insubmissa”, com a chancela da D. Quixote, em estreita parceria com o seu colega e repórter de imagem, David Araújo.

Nuno Dias da Silva
David Araújo/Direitos Reservados
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