É uma das mais conhecidas escritoras junto do público infanto-juvenil e lança agora em Portugal uma nova história da série mais famosa de Enid Blyton, «Os Cinco». Maria João Lopo de Carvalho recorda os seus tempos de docência e confessa ter uma «admiração transbordante» pelos professores.
Mesmo a tempo do Natal, publica «Os Cinco e o Quadro Desaparecido». É a concretização de um sonho antigo colocar-se na pele da escritora britânica Enid Blyton?
Eu tenho 61 anos e cresci com «Os Cinco». Toda a minha geração lia, sem exagero, 10 a 20 vezes cada livro. Os tempos eram outros e não havia assim tantas alternativas na literatura infanto-juvenil. O argumento era e é apaixonante e simples: quatro crianças e um cão, aventuras alucinantes, a lidar com heróis e vilões, sem adultos por perto. Isto para além de uma componente muito peculiar que eram os lanches, com os célebres “scones”, a limonada, a cerveja de gengibre, etc. Tudo isto entrava no nosso imaginário. Em suma, e com esta idade, ser eu um alter ego da Enid Blyton é, ao mesmo tempo, uma enorme responsabilidade e um enorme orgulho. É como ela estivesse omnipresente a espreitar por cima do meu ombro, para ver se estou a fazer bem ou a fazer mal.
Estas quatro crianças e um cão demonstram, em cada história, que é possível fazer coisas divertidas sem as novas tecnologias e sem redes sociais?
Essa é uma mensagem muito importante que estes livros passam: só com a nossa imaginação e seguindo pistas é possível resolver mistérios, e fazer coisas muito divertidas. Também estive muitos anos nos escuteiros e este desejo de aventura é sempre algo que me fascinou toda a vida. Para além de também ter sido professora. Ou seja, são os ingredientes que só me podiam fazer confluir para uma história da Enid Blyton.
A editora Leya publica «Os Cinco» em Portugal, desde 2011. É um processo moroso obter os direitos de edição?
A Leya tem os direitos da Enid Blyton para Portugal, que a nível internacional são detidos pela multinacional Hachette. A história que fiz de «Os Cinco» teve de ir à aprovação da casa-mãe. Exatamente como na Disney. Há uma marca que autoriza, mediante a cedência de direitos, o desdobramento para vários autores que aceitam as regras estabelecidas. Mas há uma condição básica: as histórias relatadas têm de ser intemporais. Não posso fazer uma história de «Os Cinco» com telemóveis, por exemplo.
E é viável ter uma aventura de «Os Cinco» em Portugal?
Já me fizeram essa pergunta. Adoraria fazê-lo. Por exemplo, no cenário da costa da Nazaré. Há mil ideias a explorar. Mas é preciso colocar a questão a quem detém os direitos. Para já o que é possível é internacionalizar esta edição, visto que o livro será traduzido para inglês. Mas competirá à casa-mãe decidir se o coloca à venda.
Qual é o enredo de «Os Cinco e o Quadro Desaparecido»?
Procuro sempre transmitir um pouco de cultura e nesta história falo do desaparecimento do quadro de William Turner, um pintor do século XVIII/XIX. A aventura passa-se na costa agreste de Inglaterra, onde existem os pitorescos faróis. É um mistério para ser resolvido em plenas férias de Natal. Como novidade inventei uma personagem que é ostracizada por não jogar futebol e que, por acaso, vai passar férias em casa do casal Kirrin. E ele vai ser a personagem-chave, devido à sua inteligência, para resolver o mistério com «Os Cinco». E a moral da história é: não podemos colocar de parte as pessoas só por serem boas alunas e não serem boas no futebol. É esta reflexão que procuro passar.
Consta que Enid Blyton escrevia diariamente 10 mil palavras. É metódica na arte da escrita?
Sou muitíssimo metódica. É um ofício como outro qualquer. Levanto-me cedo e estou o dia inteiro a trabalhar. Só não trabalho à noite. Mas não escrevo só literatura infanto-juvenil, também sou autora de muitos romances históricos para adultos. Apesar de admitir que os livros infanto-juvenis são quase como a minha respiração e que me descansam das coisas difíceis. Já os romances históricos representam um modo de sair da minha zona de conforto e, como tal, entendo-os como se fossem desafios e formas de aprendizagem. E todas as pessoas gostam de histórias, tenham 6 anos ou tenham 80 anos.
Disse uma vez o seguinte: «A escrita é a minha arma de fogo. Não fosse os livros e morria». O seu pai era escritor e jornalista, sempre viveu rodeada de livros, autores e ideias. Mas a minha pergunta é: com este contexto, como é que se começa a escrever apenas aos 40 anos?
Tinha filhos pequenos, depois também estive uma passagem na Câmara Municipal de Lisboa. Mas antes disso sempre escrevi muito, poesia, versos, contos, só que nunca os publiquei. A minha estreia foi no ano 2000, com um livro («Virada do avesso») que eu não gosto particularmente. Creio que foi uma má estreia, mas curiosamente foi o que mais vendeu até hoje. Para mim a escrita é uma vida em paralelo à vida normal. Nós, autores, temos na nossa cabeça e nos nossos dedos o destino das personagens e a própria recriação dos ambientes. Devo dizer que, neste momento, uma vida só já não me chega.
Marquesa de Alorna, Severa, Padeira de Aljubarrota e Camões, foram alguns dos seus romances históricos que escreveu. É aliciante o trabalho de historiadora e de investigadora, colecionando peças do “puzzle” de personalidades que viveram no passado?
Para escrever um bom romance histórico preciso de, aproximadamente, três a quatro anos. E o primeiro ano terá de ser, garantidamente, de pesquisa e de estudo, e passar dias a fio no meu sítio preferido que é a Biblioteca Nacional, em Lisboa. Tenho tudo à disposição, com celeridade, profissionalismo e sem pagar nada. Este é um dos locais onde eu sinto que vale a pena pagar impostos. Este período de colecionar a tais peças do “puzzle” que fala, é como se fosse um livro de «Os Cinco» para resolver o mistério. Uma espécie de caça ao tesouro. Quanto ao livro de Camões foi, na verdade, uma grande empreitada. Mas tudo o que há para saber da vida dele já estava descoberto e desvendado em livros ou noutro tipo de relatos e manuscritos. Só me faltava estar nos sítios por onde ele passou.
E foi isso que fez?
Sim, durante dois meses. Corria o ano de 2015. Andei em Malaca, nas ilhas Molucas e até passei o Cabo da Boa Esperança de barco à vela para imaginar o Adamastor visto do mar. Nos locais por onde passei recolhi inúmeras marcas da presença portuguesa e, de alguma forma, trouxe o sentido da grandiosidade da língua portuguesa. Na verdade, fiquei com a sensação de nunca ter saído de Portugal. Para escrever é preciso experienciar emoções e é precisamente esta emoção que faz a diferença quando se conta uma história. É imperioso ir ao passado para se escrever sobre o passado.
Como escritora como é que assiste à sofisticação tecnológica e ao impacto, por exemplo, do Chat-GPT na criação literária?
É ao mesmo tempo fascinante e um grande risco. O meu sobrinho fez um teste há cerca de um ano e acabou por sair um capítulo de um romance histórico como se fosse eu a fazer. O Chat-GPT faz quase tão bem como eu. O que não deixa de ser assustador para qualquer escritor. Qualquer dia somos dispensáveis.
Como reage a esta cultura emergente de reescrever as histórias datadas em nome das chamadas «sensibilidades modernas», como o sexismo ou o racismo? É uma forma de censura dos tempos modernos?
Completamente. É um «lápis azul» dos tempos modernos. Mas é preciso fazer um parêntesis. Há “guidelines” da casa-mãe que não podemos cruzar que são o bom senso e a moderação. Existem valores universais e intemporais que o bom senso leva a que não sejam transgredidos. Coisa diferente é ir aos livros da Enid Blyton escritos naquele tempo e não podermos escrever «Os Cinco» e a ciganita, etc. sou absolutamente contra mudar o que está escrito. Há determinados aspetos da agenda “Woke” que fazem sentido, mas discordo se foram levados ao exagero e a um certo grau de fundamentalismo.
Muitos dos seus livros fazem parte do Plano Nacional de Leitura e efetua frequentes deslocações a escolas para incentivar o gosto pela leitura. Quais são os seus principais destinatários?
É transversal. Tanto estou com uma turma do pré-escolar, como com uma turma do 12.º ano. Mas a maior parte dos meus livros são dirigidos ao 1.º ciclo. E o que normalmente faço é sentar-me numa secretária e esperar que os miúdos façam perguntas. Quase que faço uma “stand up comedy”, partindo da base que é o livro. E incentivo bastante à participação deles. A empatia acontece sempre. Gosto naturalmente de estar com crianças. Nunca me aconteceu estar perante uma audiência que não reagisse. E digo isto com total sinceridade. É sempre uma festa e uma parte do dia muito bem passada. Eles ficam admiradíssimos quando eu lhes digo que, quando tinha a idade deles, o castigo que me era aplicado quando me portava mal era proibirem-me de ler. Para eles, nos dias de hoje, isso não faz sentido nenhum, porque as proibições deles são outras.
Como é que se incute o gosto pelos livros nas novas gerações perante a concorrência desigual dos ecrãs?
É muito mais difícil. Mas é possível criando histórias que vão ao encontro dos seus interesses e com uma linguagem acessível e adaptada. Mas é preciso sublinhar que o trabalho de retaguarda de professores e dos pais é importante para o incentivo à leitura, em detrimento da exposição aos ecrãs. Hoje em dia, no mercado de trabalho, no recrutamento para determinadas profissões, as pessoas que leem vão sempre passar à frente das que não leem.
Concorda com a proibição de telemóveis em contexto de sala de aula?
Acho uma prática de bom senso. Eu proibiria não só na sala de aula, mas também no recreio. Agora para práticas de aprendizagem e no convívio deve ser utilizado. Mas tudo tem o seu tempo.
Quais são as memórias que guarda dos seus anos como professora?
Foi uma experiência enriquecedora, e que me deu ferramentas no futuro, mas ao fim de estar alguns anos no ensino público e também no privado achei que não tinha vocação. Mas permita-me que faça aqui a minha homenagem aos professores, pelos quais tenho uma admiração transbordante. São uns heróis nacionais. Sei o quão difícil é exercer esta profissão e o mérito e a capacidade que há que ter de deixar os problemas pessoais fora da sala de aula para estar concentrados diante de uma turma, em que muitos dos alunos não têm qualquer motivação ou interesse para ali estarem. Isto para além de os professores terem visto a sua autoridade colocada em xeque nos últimos anos. Perante isto, é muitíssimo difícil gerir uma turma.
Para concluir, um olhar sobre a Cultura em Portugal. Quando é que este setor vai deixar de ser o parente pobre dos orçamentos do Estado?
A Cultura em Portugal precisa de mais orçamento, mas também de mais atenção, mais ruído e mais barulho. É preciso tirar as pessoas de casa e levá-las a ir ver o património riquíssimo do nosso país, desde museus, edifícios históricos, requisitar um livro na biblioteca das nossas cidades e vilas. Tudo isto está esquecido, o que é surpreendente, sendo Portugal um país com tanta história e que possui as fronteiras mais antigas da Europa.
CARA DA NOTÍCIA
De professora a escritora de sucesso
Maria João Lopo de Carvalho nasceu, em Lisboa, a 5 de maio de 1962. Nos anos 80/90 foi professora de Português e Inglês, criou a primeira escola de Inglês para os mais novos e trabalhou como “copywriter” em publicidade, na McCann Erickson. Passou ainda pelas áreas da Educação e Cultura da Câmara Municipal de Lisboa. Tem mais de 70 títulos editados, entre romances, livros de crónicas, manuais escolares e livros infanto-juvenis, a maior parte deles incluídos no Plano Nacional de Leitura.