Este website utiliza cookies que facilitam a navegação, o registo e a recolha de dados estatísticos.
A informação armazenada nos cookies é utilizada exclusivamente pelo nosso website. Ao navegar com os cookies ativos consente a sua utilização.

Diretor Fundador: João Ruivo Diretor: João Carrega Ano: XXVII

Francisco Ferreira, presidente da associação ambientalista ZERO '600 mil portugueses vivem em pobreza energética extrema'

08-09-2023

É urgente tomar medidas «céleres e estruturantes» para mitigar o desconforto térmico em muitos lares do nosso país. O ambientalista Francisco Ferreira alerta ainda que numa altura em que o planeta se confronta com três crises – ambiental, biodiversidade e de recursos – é imperioso reduzir o consumo e alterar o modo como vivemos. A chave para a mudança pode estar na escola, mas para isso é preciso reativar a mobilização estudantil para as causas do clima.

Quase diariamente, chegam-nos notícias dos danos provocados pelas alterações climáticas, um pouco por todo o mundo. As alterações climáticas estão a evoluir mais rapidamente do que o previsto?

São cerca de três mil os cientistas que compõem o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas e que desenvolvem relatórios regularmente. O último dos quais foi, precisamente, elaborado entre 2022 e 2023, e já apontava para uma trajetória da emissão de gases com efeito de estufa que se tem vindo a confirmar, nos últimos meses, em termos de consequências severas para o aquecimento global. Com uma particularidade: os eventos meteorológicos extremos, os recordes de temperatura verificados, o aumento do nível do mar e até o regresso do fenómeno “El Niño”, vão ainda mais além do que o Painel Intergovernamental estimou. Em suma, o que era esperado para daqui a uns anos, vai acontecer mais rapidamente. Portanto, tocaram as campainhas. E foi o próprio secretário-geral da ONU que, a propósito da emergência climática, disse que o planeta já não está em aquecimento, mas sim numa ebulição à escala global.

As metas estabelecidas estão a falhar?

Estamos a aproximar-nos, muito rapidamente, de atingir 1,5º graus “celsius” de aumento da temperatura em relação à era pré-industrial. O outro objetivo do Acordo de Paris – que é o de fazer decrescer o volume de emissões em 2025 – também está longe de ir no rumo certo. Nomeadamente na pandemia tivemos pequenos períodos de redução das emissões, mas assim que a normalidade foi restabelecida, logo as emissões aumentaram para níveis acima do que seria desejável.

Os efeitos das alterações climáticas são globais, mas os países não respondem da mesma forma à adversidade. Este é um obstáculo que a todos prejudica?

As consequências das alterações climáticas podem ser mais mitigadas pelos países com mais recursos e maior grau de desenvolvimento, o mesmo já não se pode dizer dos países mais pobres, que nem de longe nem de perto possuem esses recursos. Fenómenos como a tempestade tropical na Flórida, os incêndios no Canadá, as cheias na Eslovénia ou os recordes de temperatura nas cidades do centro da Europa não podem ser comparados, em termos de capacidade de mitigação ou de adaptação dos seus efeitos, ao impacto de eventos climatéricos extremos  sentidos em Madagáscar, por exemplo, ou em outros países do continente africano, neste clima em mudança.

A descarbonização da economia está a acontecer, à escala global, a um ritmo mais lento do que seria desejável, também por termos um mundo a várias velocidades?

Os países, e em particular as empresas, não estão a fazer a transição para as fontes de energia renovável e a aumentar a eficiência energética. Os países que extraem combustíveis fósseis (petróleo, gás natural e carvão) assumem que não há alterativa e que esta energia é absolutamente necessária e fundamental para as próximas décadas. A mudança existe, mas a resposta ainda está muito longe de ser suficiente. Inclusive em Portugal. Veja-se o caso da Galp, a grande refinadora de petróleo do nosso país, que tem dois terços de investimento em extração e apenas um terço de investimento em renováveis. Nos últimos anos, no nosso país, as emissões de combustíveis na área do transporte rodoviário aumentaram 5,2 por cento. Isto apesar de estarmos a investir e a fazer progressos assinaláveis na energia solar, nos painéis fotovoltaicos e na aquisição de veículos elétricos.

Esta é a pergunta para um milhão de dólares: ainda vamos a tempo de evitar o colapso climático ou já chegámos a um ponto sem retorno?

A resposta do clima é sempre atrasada e demorada. Para que as pessoas percebam, cada vez que aumentamos as emissões e a própria temperatura do planeta sobe, nem que seja uma décima, o sistema climático tem sempre mais dificuldades em retroceder nessa décima. Simplificando, subir demora menos tempo, descer é que demora mais tempo. Com a particularidade que enquanto eu estou num patamar superior, as consequências são muito mais dramáticas. No final de novembro, início de dezembro, teremos, no Dubai, a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP28) em que será feito um balanço que, certamente, revelará resultados dramáticos, nomeadamente pela falta de progressos à escala global.

Qual é o sinal que se dá quando um dos maiores produtores de combustíveis fósseis do mundo, como são os Emirados Árabes Unidos (EAU), acolhe um evento como a COP28?

É uma decisão problemática e que já provocou boicotes por parte de vários países. Admito que é difícil ter um presidente da conferência que é simultaneamente o CEO da companhia petrolífera de maior expressão dos EAU, tornando muito remota a possibilidade de existirem cedências em áreas que coloquem em causa o seu negócio. Apesar disso, a ZERO vai estar na conferência do Dubai, tal como o governo e outras organizações, e desejamos que sejam tomadas decisões importantes, ambiciosas e progressistas. Mas temos consciência que entre as decisões e a ação vai sempre uma grande distância.

A mobilidade sustentável é um dos grandes problemas das nossas metrópoles. Reforçar a rede de transportes públicos ou penalizar o acesso de viaturas aos centros das sociedades, com a colocação de portagens urbanas. Tem preferência?

Existiu um enorme investimento nos transportes públicos, nomeadamente com os passes, aumentando a atratividade para o recurso a esta forma de mobilidade, mas ao mesmo tempo continua a consumir-se mais gasóleo e mais gasolina, porque o carro continua a ter uma enorme expressão. Os motivos são vários: há razões de natureza cultural, mas também houve uma perda de confiança nos transportes públicos (alguns dos quais por falta de capacidade no serviço) e as próprias empresas, algumas delas são as que se dizem sustentáveis, oferecem automóvel, combustível e até lugares de estacionamento aos seus colaboradores. Isto é um estímulo enorme para que as pessoas não larguem o carro.

Feita esta introdução ao tema, que medidas concretas preconiza?

Combinar a penalização automóvel, a oferta de qualidade do transporte público e, finalmente, estimular uma atitude de maior distanciamento das pessoas em relação ao automóvel. O carro não precisa de ficar sempre na garagem, o que é preciso é utilizá-lo com bastante menor frequência, substituindo-o pelo transporte público. Contudo, há um aspeto decisivo que se relaciona, diretamente, com as escolas. Os pais que começam o dia levando o filho à escola no seu carro, vão, quase de certeza, passar o resto do dia com o carro. Ou seja, nunca se separam dele. É preciso quebrar este ciclo no acesso às escolas. E não esquecer que esta concentração de viaturas de manhã e à tarde junto aos estabelecimentos de ensino também gera problemas em termos da qualidade do ar que é respirado.

Mas não se vê que o transporte escolar seja uma alternativa, especialmente nas grandes cidades…

É preciso envolver as autarquias, a rede de transportes e a mobilidade urbana para quebrar o uso do carro nas escolas e fomentar, usando formas inovadoras, o transporte escolar.  O ideal seria as crianças irem para a escola a pé ou de bicicleta, naturalmente de forma segura, mas isso é extremamente difícil e não reúne a confiança e aprovação da maioria dos pais.  Temos, por isso, de encontrar soluções, a par de penalizar o uso do automóvel particular, cujo combustível (gasolina e gasóleo), apesar de estarem a níveis muito elevados, estão a ser subsidiados. De qualquer forma, e sabendo que há pessoas que vivem em zonas sem alternativa de transporte público, talvez uma solução mais sensata e equilibrada fosse ter os centros das cidades sem carros, sempre e quando – e isso acontece no centro de Lisboa e Porto, por exemplo – exista uma rede de transporte eficiente e a funcionar. Penso que este seria um caminho para uma mobilidade ativa e sustentável.

Um dos pilares de ação da ZERO é o combate à desigualdade social e económica. Como define pobreza energética, uma situação que, segunda estima, atinge cerca de dois milhões de portugueses?

A pobreza energética é um conceito fácil de perceber. Se estivermos na nossa casa e nos sentirmos desconfortáveis, por muito calor ou muito frio, e não temos capacidade económica para corrigir essa temperatura, ou por mau isolamento da casa, os vidros não são duplos, etc., então isso é uma situação de pobreza energética. No fundo, quando não se consegue atingir, no inverno ou no verão, uma temperatura de conforto.

Que medidas devem ser tomadas para mitigar esse desconforto em muitos dos nossos lares?

O ideal será avançar com medidas passivas, ao nível do isolamento das casas, materiais de construção utilizados e recurso a vidros duplos, em detrimento das chamadas medidas ativas que envolvem o consumo de energia, como é o caso do ar condicionado ou formas de aquecimento pouco sustentáveis, sendo exemplo disso as lareiras abertas. Mas como disse na sua pergunta, estima-se que dois milhões de portugueses vivam em pobreza energética, sendo que desses, 600 mil pessoas fazem-no em pobreza energética extrema. Estes últimos nem sequer conseguem ligar a ventoinha ou ter um sítio da casa onde se consigam abrigar do frio ou do calor extremo, simplesmente por falta de dinheiro para pagar a conta da eletricidade ou fazer um investimento, por mínimo que seja, para atenuar o desconforto. É, por isso, fundamental que o governo tome uma decisão célere e estruturante. Não temos ainda aprovada a Estratégia Nacional de Longo Prazo para o Combate à Pobreza Energética.

A carência de recursos hídricos é um dos mais dramáticos problemas com que o país se debate. Que estratégia deve ser seguida para combater a seca?
Para começar, é preciso dizer que 70 por cento da água utilizada em Portugal vai para a agricultura, sendo também neste setor que existe o maior desperdício, na ordem dos 40 por cento. É preciso ir mais longe no que é necessário fazer. E isto é válido para a água e para a energia. É preciso fazer um uso proficiente do recurso à água e também nas nossas casas isso deve acontecer. O tempo no duche é absolutamente crucial pela quantidade de litros que gastamos todas as manhãs. Ao nível dos sistemas municipais também é preciso evitar o desperdício e igualmente as fugas de água. Finalmente, seria importante retomar algo que já esteve em vigor, mas de forma pouca expressiva, que é o Plano Nacional para o Uso Eficiente da Água, que envolvia um conjunto de medidas, cuja monitorização era feita a par e passo.

Ainda faltam campanhas para sensibilizar a opinião pública?

As campanhas de sensibilização de pouco valem quando estou, por assim dizer, com a «corda na garganta» no que respeita às disponibilidades hídricas.

A ZERO defende que a dessalinização da água do mar é uma solução de último recurso para a escassez de água. Porquê?

É um processo muito caro e não faria sentido estarmos a apostar numa prática dispendiosa. É uma infraestrutura que consome imensa energia. Com o dinheiro que aí vai ser investido e gasto, sai mais barato adotar medidas de redução de perdas e de melhor gestão da água, nomeadamente na agricultura, selecionando as culturas mais adequadas ao uso dos recursos hídricos.

Numa altura em que já se fala da figura dos «refugiados climáticos», a escassez de recursos hídricos pode ser nos tempos que se avizinham o principal fator de disputas geopolíticas, nomeadamente a nível local e regional?

Diria que sim. A água já é e tornar-se-á, ainda mais, uma grande fonte de conflitos. Nomeadamente, em África e na América Central, a escassez de água sente-se fortemente, tanto para beber, como para abastecer a agricultura para o fornecimento de alimentos à população. Por seu turno, na região do Pacífico e em alguns países asiáticos, a subida do nível do mar está a suprimir parcelas de territórios. Ambos os casos são exemplos que espoletam movimentos migratórios climáticos com grande peso. E há aqui também outro fator associado ao clima: os locais sujeitos a incêndios. Basta ver os fogos destruidores na Grécia e no Havai.

A sueca Greta Thunberg foi o rosto de um movimento nas escolas pela sustentabilidade do clima. A nova geração está consciente e mobilizada para os problemas ambientais?

Acho que sim, mas não o suficiente. Houve uma fortíssima mobilização no período pré-pandemia, até 2019, mas a pandemia tirou fôlego a esses movimentos. E isto não se passa apenas em Portugal. Há ainda algumas escolas que, em determinadas alturas, aderem à greve climática estudantil. Mas é um número muito residual. Tem de haver uma reativação da mobilização estudantil para as causas do clima. Do ponto de vista da sensibilização, acredito que os jovens têm a perfeita noção da dimensão do que está a acontecer, e vê-se que tomam medidas na sua vida quanto ao consumo de carne, e até noutras dimensões, como no âmbito da sustentabilidade, nas questões sociais, económicas e até de género, etc.

Um estudo recente diz que 12 por cento do lixo eletrónico provém dos componentes dos “smartphones”, aparelhos que, como todos sabemos, estão sujeitos a uma obsolescência programada. Este é um dado que devia ser transmitido massivamente e, em especial, aos mais jovens?

Costumo dizer que temos três crises: uma crise climática, uma crise de biodiversidade e, finalmente, uma crise de recursos. E nesta última vertente da crise, os recursos, não temos tido uma grande capacidade de ação. Continuamos a viver numa sociedade muito consumista e os jovens desempenham um papel central neste modo de vida. É enorme a velocidade e também a ansiedade com que trocamos de telemóvel, de “gadgets”, de roupa e outros objetos do nosso dia a dia. Por isso, seria necessário reforçar a mensagem, para consciencializar, que uma das formas mais fundamentais de lidar com a crise ambiental é reduzir o consumo.

Considera suficientes os currículos sobre questões ambientais e de sustentabilidade no universo escolar?

Honestamente não acho que o problema esteja nos currículos. Nas disciplinas de Ciências Naturais e na Geografia, por exemplo, as questões ambientais, têm o seu espaço. O que penso podia ser feito era envolver, eventualmente no primeiro e segundo ciclos, mais os alunos em disciplinas eminentemente práticas, integrando-os em projetos como o “Programa ECO-Escolas”. Saber como funciona a redução do consumo de água, a compostagem, a gestão de resíduos, a poluição, a degradação do património natural – tudo visto numa perspetiva integrada, local e regional, conferindo uma consciência particular aos estudantes. Em suma, passar do currículo para a realidade. O segredo reside, pois, em valorizar mais estes projetos, em detrimento do currículo pelo currículo.

 

A CARA DA NOTÍCIA

10 anos a apresentar o «Minuto Verde»


Francisco Ferreira preside, atualmente, à «ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável», uma organização ambientalista, nascida em finais de 2015, fruto do interesse comum de cerca de uma centena de pessoas pela defesa dos valores da sustentabilidade na sociedade portuguesa. As suas principais áreas de investigação são a qualidade do ar e as alterações climáticas. É professor no Departamento de Ciências e Engenharia do Ambiente da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa (FCT/UNL). Esteve 28 anos na Quercus, associação a que presidiu, de 1996 a 2001 e foi vice-presidente entre 2007 e 2011. Foi membro do Conselho Nacional da Água e do Conselho Nacional de Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. Até ao final de 2015 e após quase dez anos, foi autor e apresentador na RTP da rubrica diária «Minuto Verde». 

Nuno Dias da Silva
Direitos Reservados
Voltar