Este website utiliza cookies que facilitam a navegação, o registo e a recolha de dados estatísticos.
A informação armazenada nos cookies é utilizada exclusivamente pelo nosso website. Ao navegar com os cookies ativos consente a sua utilização.

Diretor Fundador: João Ruivo Diretor: João Carrega Ano: XXVII

reflexões ponderadas e pertinentes sobre a sociedade e educação Hugo Van Der Ding, o criador que poderia ser advogado

09-09-2022

Primeiro estranha-se e depois entranha-se. Hugo van der Ding, na primeira pessoa, e num registo desconcertante e ao mesmo tempo sério, com reflexões ponderadas e pertinentes sobre a sociedade e a educação.

Confessa não gostar da definição de humorista e dá-lhe vontade de rir quando lhe chamam ilustrador. Qual é a categoria profissional que tem na sua relação com as Finanças?
Tenho uma categoria lata, que se chama criação artística e literária. Chamam-me humorista, mas podiam perfeitamente chamar-me ginecologista ou arquiteto paisagista. Um humorista faz coisas com o propósito de as pessoas se rirem. Não é o que eu faço. Admito que algumas podem ter graça, mas o objetivo final do meu trabalho não é esse. Veja que a rubrica da Antena 3 - «Vamos todos morrer» - costuma aparecer na categoria de humor, o que não me chateia nada, mas admito que muitas pessoas vão até lá ao engano. Vivemos numa época em que acho que não é preciso encaixar as pessoas em prateleiras e aplicar rótulos relativamente ao que fazem profissionalmente.

Então estamos na presença de um criador experimentalista, fora da caixa, como agora se diz. Revê-se na definição?
Sim. Mas uma coisa que eu gostaria de ser quando fosse grande era escritor. Sinto-me feliz a escrever. Mas gosto de experimentar tudo: rádio, televisão, teatro, etc. Os desenhos começaram com uma brincadeira com amigos e só mais tarde é que ganharam a dimensão que hoje têm.

É apropriado dizer que se perdeu um advogado medíocre e se ganhou um criador de primeira água?
Não sei. Acho que teria sido um advogado brilhante porque a minha habilidade é conseguir enganar as pessoas e elas acharem que sou ótimo a fazer coisas. Não sei desenhar e as tiras são, provavelmente, os trabalhos mais bem sucedidos da minha carreira.

Quanto a influências e inspirações, cita sempre Quino, o criador de Mafalda, Schulz, o criador de Charlie Brown, Hergé, o criador de Tintim, os Monty Pyton e o nosso Herman José. Acredita que, daqui a umas décadas, será visto como uma marca registada para futuras gerações de criadores?
Nunca tinha pensado dessa maneira. Mas não aprecio o entretenimento pelo entretenimento. É preciso algo mais. Se conseguir passar a ideia a um público mais exigente que através do entretenimento é possível trocar ideias e aprender algo, ficaria muito satisfeito. É muito interessante saber que muitas crianças, quando vão no carro com os pais por volta das 8h30 da manhã, ouvem a rubrica «Vamos todos morrer» que faço na Antena 3, há já quatro anos.

Disse numa entrevista recente que «o tédio é a mãe de toda a expressão criativa». Para si, evitar o aborrecimento é o combustível para as suas criações?
Sem dúvida. Faço milhares de coisas ao mesmo tempo. Adoraria escrever um livro de literatura, mas isso requer um horizonte infinito de tempo à nossa frente. Para já, é impossível para mim. Não consigo estar parado. Enquanto espero nalgum serviço público ou durante uma viagem ou estou a ouvir “podcasts”, música, ou então leio um livro. Confesso que tenho imensa pena em não ter feito o liceu com o Google. Tinha aprendido muito mais coisas. Mas é também preciso saber dosear a quantidade enorme de informação que nos invade e que acaba por nos calar a nossa vida interior.

Como influenciador de opinião e figura pública, com vincada intervenção social, como é que se procura precaver para não entrar em temas que possam acicatar uma cultura de ódio e de cancelamento, ambas tão em voga?
Tenho algum cuidado. Faço o espelho da sociedade, como eu a vejo, através dos meus desenhos. Mas não tenho de ter ou partilhar opinião sobre tudo. Procuro fazê-lo de forma cirúrgica. Penso que há um excesso de opinião nas nossas sociedades, fruto da emergência das redes sociais e das democracias. O essencial para mim é o seguinte: o direito a dar uma opinião não transforma essa opinião nem em válida, nem em interessante. E a violência que nos rodeia já não é exclusiva das redes sociais. Já extravasou as próprias redes. Vimos isso, recentemente, na cena de pancadaria em plena cerimónia dos Óscares de Hollywood. Isso já é o efeito das redes sociais.  Ainda por cima protagonizada por um ator que devia ser um modelo para milhões de jovens. E aparentemente sem consequências para o agressor.

«O lixo na minha cabeça», editado agora pela Oficina do Livro, apresenta uma coletânea de algumas das suas tiras mais famosas. Há alguma que elege como a sua favorita?
É difícil escolher. Mas o processo de seleção foi muito engraçado, porque fartei-me de rir com coisas que já não me lembrava que tinha desenhado. Mas talvez a minha favorita seja um desenho a preto e branco, em que uma mãe e um filho encontram um mictório ao contrário, e ela diz ao miúdo: «Não apanhes coisas do chão!». Simples e eficaz.

Os seus bonecos são, quase sempre, mulheres e, quase sempre, muito pespinetas e ariscas. Há alguma explicação freudiana para isso?
É possível. No início dos meus trabalhos não me apercebi, mas mais tarde chamaram-me a atenção para isso. De facto, as minhas personagens são todas mulheres e os homens quando aparecem são uma espécie de acessórios. Refletindo melhor, talvez se deva ao facto de eu ter crescido com uma presença muito forte da minha avó e da minha mãe. Acho, sinceramente, que as mulheres são mais ricas nas suas subtilezas e têm muito mais matizes intelectuais e estados de espírito do que os homens. Muitas das histórias das minhas tiras são verídicas e presenciei-as com os meus próprios olhos.

Juliana Saavedra, «a psicanalista que deixa os pacientes na merda», é uma das suas personagens mais populares. Inspirou-se, de alguma forma, na experiência de terapia que faz?
Não, a minha terapeuta é ótima e costuma dizer-me: «Eu não sou a Juliana Saavedra!» Ela é inspirada naquilo que eu acho que os psicólogos e os psicanalistas pensam sobre os seus pacientes. E sei que estes profissionais costumam olhar para as minhas tiras.

Revelou publicamente que sofre transtorno bipolar, diagnosticado tardiamente. Este foi o seu contributo para desmistificar o preconceito em torno da doença mental?
Pensei muito antes de aceitar o convite do «Observador» para falar da minha situação, mas entendi que podia ser útil e importante para alguém que estivesse a passar por uma fase pior. Não esperava era uma reação tão avassaladora à entrevista. Recebi centenas de mensagens e até pedidos de ajuda. Alguns disseram mesmo desconhecer que podiam pedir ajuda para o seu problema, o que se explica pelo isolamento a que se condenam as pessoas que sofrem destas situações de natureza mental. Mas longe de mim a ideia de me tornar um “poster boy” da bipolaridade, até porque não sou um técnico de saúde.

Um país em crise e um contexto socioeconómico adverso, como o que vivemos, gera mais matéria para um criador trabalhar?
É um clássico que os períodos de crise ou de guerra sejam muito ricos na produção, seja na literatura, no cinema, na pintura, etc. E é essa produção que acaba por ser, de alguma forma, uma «boia de salvação» e uma evasão para as pessoas, quando a vida se torna mais difícil. Por exemplo, durante a pandemia as pessoas, devido aos confinamentos, ganharam o gosto por consumir os filmes e as séries nas plataformas de “streaming”.

Trabalhar nas manhãs da Antena 3, o mesmo é dizer, na rádio pública, confere-lhe responsabilidade acrescida por ser pago pelo dinheiro de todos nós?
Trabalhar na rádio pública dá-me uma liberdade enorme, uma vez que não existe a pressão voraz das audiências. É o sítio certo para arriscar e para se poder experimentar coisas, nunca perdendo de vista o serviço público.

«Rir é o melhor remédio» ou «tristezas não pagam dívidas». Em qual destes adágios populares se revê?
«Rir é o melhor remédio» é o melhor, para tudo. Rir é ”awesome”.

Uma pergunta final sobre educação. O ensino criativo e artístico em Portugal, no campo das artes, pintura, banda desenhada e música, por exemplo, está suficientemente desenvolvido como vertente educativa?
Existe um sistema montado na educação pública que deixa, a maior parte dos alunos, à mercê dos professores serem ou não serem bons e empenhados. É quase uma lotaria. Por acaso, tive a sorte de ter frequentado uma escola pública em que os docentes eram ótimos. Não me lembro de ter tido no liceu um único professor mau. Atualmente, estou em crer que é necessário dar mais qualidade ao ensino e isso faz-se pagando como deve ser aos professores e dando-lhes condições de trabalho. Isto para que as pessoas se possam dedicar, com paixão, à sua profissão, e para que se acabe, de vez, com as vidas precárias que muitos levam.

Já sabemos a sua visão global sobre o sistema educativo. Fale-nos agora do ensino criativo e artístico…
O Estado tem muito poucas escolas artísticas e as que existem estão muito centralizadas em grandes cidades. Penso que faz falta uma sensibilização geral para que, assim que se note que um aluno ou uma aluna são diferentes, estes devem merecer um tratamento ou uma atenção especial. Se um professor alertar os pais e outras entidades dentro da escola que um estudante ocupa o tempo todo a fazer desenhos, ignorando tudo o resto que é ensinado, podemos estar na presença de um grande talento, que pode ser aproveitado. E esse é um papel que deve caber às escolas. O desinteresse e a indisciplina nas aulas têm muito que ver com isso, acabando por traumatizar e frustrar os jovens e as crianças. Mudar isto ia fazer os alunos muito mais felizes.

 

A CARA DA NOTÍCIA

O homem dos sete instrumentos

Hugo van der Ding é o nome artístico de Hugo Sousa Tavares. O criador que deu vida à Criada Malcriada e à psicanalista Juliana Saavedra é um verdadeiro homem dos sete instrumentos. Foi autor da página de Facebook «Cavaca para Presidenta», traduziu livros e de há quatro anos a esta parte é presença assídua nas manhãs da rádio Antena 3 com a rubrica «Vamos todos morrer». As célebres tiras com as suas personagens femininas foram agora compiladas no livro «O lixo na minha cabeça», editado pela Oficina do Livro. O seu sonho, «quando for grande», é ser escritor.

Nuno Dias da Silva
Direitos Reservados
Voltar