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Diretor Fundador: João Ruivo Diretor: João Carrega Ano: XXVII

António Nogueira Leite, economista ‘A inflação não será temporária, mas permanente’

20-06-2022

Nogueira Leite acredita que a inflação é um fenómeno duradouro e defende que o país precisa de «verdadeiras mudanças», a começar por uma reforma da administração pública e a aposta, em todos os níveis de ensino, por uma «educação de qualidade». O antigo secretário de Estado do Tesouro e Finanças, que leciona há mais de 30 anos na Nova SBE, revela ainda o segredo do sucesso da escola portuguesa melhor posicionada nos rankings da especialidade. Para ouvir no podcast Ensino Magazine.

No dia em que falamos, a inflação situa-se nos 8 por cento e as taxas juro já empreenderam uma vigorosa trajetória de subida, com um tremendo impacto no poder de compra. Utilizando uma expressão popularizada pela pandemia, quando é que alcançamos o pico?
Ninguém sabe dizer, neste momento, nem seria razoável, da minha parte, tentar fixar uma data. Espero que não seja um crescimento demasiado elevado, apesar de estarmos, atualmente, numa situação de ajustamento para patamares já consideráveis. Admito que possamos ter, em 2023, uma inflação abaixo de 10 por cento. Este é o meu cenário central, mas como dizia o Vasco Pulido Valente, «o mundo está perigoso», e não é de descartar que eventos futuros possam vir a alterar esta previsão. Agora, acredito que possamos estar num fenómeno permanente. Mudámos um paradigma para quase não inflação, para termos alguma inflação. De qualquer forma, penso que estamos muito longe do que vivemos, nomeadamente os mais velhos, até meados dos anos 90.

O Banco de Portugal está mais otimista e admite que a pressão inflacionista será curta…
Este é um contexto muito especial, com a situação pandémica, que não se vivia desde 1918/19, a guerra no leste da Europa e também o estrangulamento logístico a nível mundial, numa economia globalizada, mas não tenho a visão do Banco de Portugal que defende que esta será uma inflação temporária. Os indicadores levam-me a crer que este movimento inflacionista será permanente. Não será “ad eternum”, mas não podemos contar que seja temporário. Por outro lado, os juros estão a subir, nomeadamente os juros da dívida, devido à alteração da política monetária para responder à inflação. O anúncio feito a semana passada de que deixaria de haver um apoio especial para os países mais endividados, teve um impacto imediato em Portugal e Itália, por exemplo. Em resultado disso, as taxas Euribor – que são a referência para muitas transações financeiras na determinação do juro a pagar – registaram um salto grande. Veremos como os mercados reagem a esta aparente correção de estratégia do Banco Central Europeu (BCE), na reunião de 15 de junho. Sendo que é de esperar que o BCE altere as suas taxas diretoras, esperando-se, por isso, um cenário, a médio prazo com juros mais elevados.

Refere-se aos juros da dívida?
Os juros da dívida e também os das empresas e dos particulares. É preciso não esquecer que há muitas operações que têm indexadas o valor Euribor.

Na reunião que se realizou precisamente hoje, o BCE anunciou um plano tendo em vista evitar a fragmentação dos mercados financeiros da dívida pública. Se isso acontecesse, Portugal, por ser dos mais endividados, ficaria em situação de risco acrescido?
Sim, mas isso é um eufemismo para dizer “spreads” alargados em países como Portugal, Espanha, Itália, Grécia e outros. Ao reinstituírem, embora de forma diferente, a política de compras, o que estamos a fazer, na verdade, é assegurarmos os “spreads” da dívida dos países mais endividados da periferia e do sul da Europa. No fundo, este é, claramente, um andar para trás por parte do BCE, após a reação dos mercados à decisão anteriormente tomada.

Já se sabia que o dinheiro estava barato e os juros iriam, mais tarde ou mais cedo, subir. O BCE podia ter intervindo mais cedo?
No final do ano passado já tinha escrito que a informação disponível, ainda que não definitiva, apontava para uma instalação progressiva de uma inflação permanente. Os economistas do BCE diziam que a situação era de inflação temporária. Contudo, os novos dados que surgiram nos últimos meses levaram à revisão da posição mais otimista por parte da autoridade monetária europeia. Contudo, valha a verdade, no início de 2022, o vice-presidente do BCE, Luís de Guindos, já alertara para o eventual fenómeno permanente que se desenhava para a inflação.

A presidente do BCE, Christine Lagarde, tem as caraterísticas apropriadas para liderar este processo de crise ou faltam-lhe as competências do seu antecessor, Mário Draghi?
Mário Draghi tinha mais qualificações no plano académico. Mas nestes cargos não é só o presidente que conta. A equipa que o rodeia é muito importante. E Christine Lagarde conta como seu vice-presidente, Luís de Guindos, que é bom lembrar, resolveu, em larga medida, o gigantesco problema bancário de Espanha. Isto para além dos economistas de grande craveira que a aconselham no comité executivo. Portanto, discordo dos que possam pensar que Lagarde não estará à altura das circunstâncias. Sendo certo que ela tem, nas últimas décadas, uma carreira muito mais política do que técnica.

Perante este cenário de convulsão permanente, o nosso Orçamento do Estado para 2022 – que ainda está na Assembleia da República – encontra-se mais desatualizado do que nunca e todos os olhos já estão no Orçamento para o próximo ano. O que podemos esperar dos seis meses que faltam para terminar 2022?
O Orçamento, neste momento, é um instrumento de ficção. Se já estava desatualizado na altura em que foi discutido, agora está completamente ultrapassado. Infelizmente, já ninguém estranha muito porque nos últimos anos criou-se uma tradição – que não existia – de os instrumentos serem uma referência que é mais ou menos tomada depois da sua execução. Certamente, o afastamento do cenário macro vai ser maior comparativamente com orçamentos anteriores. A receita fiscal terá um comportamento diferente do que foi pensado e a política salarial e de rendimentos que consta vai penalizar bastante os funcionários públicos e todos aqueles que, de alguma forma, através de instrumentos de concertação social, têm salários ajustados por esse referencial. Na verdade, já percebemos que um aumento salarial de 1,9 por cento para este ano é, de facto, um corte salarial.

Antevê, por isso, que o OE 2023 seja mais prudente do que expansionista, como o governo desejaria?
Vai ter de ser relativamente prudente. Basta ter em mente o que aconteceu com a saída do BCE das compras e o seu efeito nos juros da dívida portuguesa. O discurso prudente do ministro das Finanças – e que tem sido “sufragado” pelo primeiro-ministro – vai conformar a política orçamental para 2023. Em primeiro lugar, com grande pena para todos nós, a começar por mim próprio, a subida salarial nestes dois anos não compensará o aumento de preços. Ainda não há muito ouvíamos que já se tinha passado a austeridade, mas a perda de rendimento real para todos os trabalhadores da função pública mais não é do que austeridade. Como foi em 2011 e outras vezes no passado.

O ex-Presidente da República, Cavaco Silva declarou que Portugal precisa de crescer economicamente, de forma sustentada, a 4 por cento. Temos modelo de desenvolvimento económico capaz de, no curto prazo, alcançar esse objetivo?
No curto prazo acho difícil. Portugal é um país onde existem consensos amplos sobre ideias relativamente vagas. O crescimento chegará com empresas mais produtivas, competitivas e também resistentes, perante um ambiente concorrencial internacional. Para além disto, é preciso atrair capital e criar um ambiente para que as empresas e os cidadãos possam desenvolver as suas atividades de uma forma favorável. O consenso político existe entre PS, PSD, IL e até o CDS, mas para assegurar essas condições é preciso adotar uma série de reformas.

E que reformas são essas?
É preciso reformar a administração pública e continuar a apostar no investimento público. Bem como uma maior concentração de empresas, porque dispomos de um tecido empresarial demasiadamente pulverizado, o que torna difícil o aumento da produtividade, fundamental para que possamos crescer. Em suma, há um consenso vago no caminho a seguir, mas falta a elaboração em como concretamente fazer. Dito de outra forma, há muita proclamação, mas não existe um plano de trabalho para que isso aconteça. Se estas condições não mudarem nos próximos anos, temo que continuemos no caminho do fraco crescimento.

Este governo de maioria absoluta tem, nas suas mãos, a oportunidade perfeita para levar a cabo as reformas que se impõem? A direita costuma dizer que a esquerda resiste em fazer reformas…
Na prática tem sido assim. É uma questão de constatação. Condições para operar reformas existem: apesar do contexto externo difícil, temos um governo de maioria sólida. Mas em primeiro lugar, é preciso querer. E isso dá trabalho. Governar para os cliques e para as notícias é fácil. Não se pode governar o tempo todo agradando a toda a gente. As reformas têm ganhadores e perdedores. Por isso, é preciso, eventualmente compensar os perdedores, para avançar com reformas imperiosas. Isto se não quisermos, no futuro, ser todos perdedores. Mas estou convicto que se o primeiro-ministro quiser incutir essa dinâmica no governo elas serão feitas.


Para já António Costa tem nos braços a delicada questão da crise de recursos nas urgências de obstetrícia do SNS. Este é apenas um dos vários problemas estruturais que a pandemia deixou em suspenso?
É um problema muito visível agora devido a uma conjugação de situações. Desde 2015, o governo liderado por António Costa privilegiou a reposição dos rendimentos dos funcionários públicos, em detrimento do investimento e do capital público. Isto levou a uma contenção tremenda ao nível das despesas de funcionamento da administração pública, com implicações no funcionamento e no trabalho das pessoas. Sem renovação dos equipamentos, das instalações e sem organização e sem disponibilidade para distribuir incentivos corretos e a consequente e adequada gestão de pessoal, não se pode pedir à administração pública uma resposta diferente da que consegue dar, neste momento.
A nossa administração pública funciona com processos que remontam às últimas décadas do século XX. A pandemia foi um obstáculo, mas estes problemas já deviam ter sido atacados anteriormente. E não me refiro apenas ao governo PS.

A administração pública parou no tempo e carece de uma urgente modernização?
Sim. Mas o problema não é de quem lá trabalha. Quem decide é que tem resistido em afrontar alguns interesses instalados. É urgente trazer a administração pública portuguesa para o presente, para 2022. É fundamental para a relação com os cidadãos e inclusive para promover a atividade empresarial. Uma administração pública moderna facilita a fluidez das relações económicas.

A outra face da maioria absoluta, com o fim da “geringonça”, tem sido os sindicatos nas ruas e as greves. Admite o fim da paz social?
A situação mais tensa é visível no setor dos transportes. O PCP tem uma central sindical que lhe é extremamente próxima e vai utilizar essa capacidade para reivindicar aquilo que são os seus interesses. O que penso que aconteceu nas últimas eleições, é que muitos portugueses – sobretudo os que estão em idade ativa – entenderam que o país precisava de mudar e tinha uma oportunidade ótima para isso acontecer. Definitivamente, não podemos continuar a insistir no princípio de Lampedusa, que dizia que é preciso mudar alguma coisa, para ficar tudo na mesma. Portugal precisa de verdadeiras mudanças.

O crescimento anémico da economia é um problema, mas o endividamento do país continua a ser, provavelmente, o principal “calcanhar de Aquiles”. Este é um fardo que continuaremos a carregar, onerando as gerações vindouras?
É verdade. O endividamento é muito grande, não apenas no Estado, mas também nas famílias e nas empresas. Para além de rigor na despesa, precisamos que a economia cresça, nominal e realmente, para que o fardo da dívida diminua. Qualquer coisa que façamos hoje, está condicionada pelo que fizemos de errado coletivamente no passado. Ou mudamos de rumo ou daqui a uns anos o condicionamento será ainda maior e o imobilismo ainda mais frustrante.


Tem escrito no «Observador» vários artigos sobre a produtividade e num dos mais recentes disse que «cada euro investido em educação e formação terá maior impacto na produtividade e crescimento a prazo se for de educação de qualidade, com maior impacto nas competências e capacidades dos indivíduos». O que quer transmitir é que o país pouco crescerá se a aposta esquecer a qualificação dos recursos humanos?
É um facto que o país tem investido em educação, mais do que no passado. Mas só conseguiremos fazer a diferença se investirmos numa educação de qualidade, que prepare as pessoas, e que lhes dê os instrumentos para lidar com o presente e o futuro. Isso só se consegue com uma educação rigorosa, exigente e com meios. Isto não vai lá apenas com voluntarismo. Os professores e as escolas têm de possuir meios de gestão, e os alunos têm de aceder ao melhor que é possível dar em educação. Por seu turno, os que vivem em maiores dificuldades sociais e financeiras devem ser apoiados. No ensino básico, secundário e superior nem sempre o requisito da educação de qualidade está presente. Massificar o acesso ao ensino já foi feito, agora é preciso melhorar a qualidade do ensino. E rapidamente, porque a educação tem os seus efeitos a prazo.

Em resumo, investir em educação é crucial para crescermos economicamente?
O futuro do país depende da educação. Veja que a Irlanda era um país tão atrasado quanto Portugal nos anos 60 do século passado. Era vista como uma nação inviável, mas exportava jovens, nomeadamente para os Estados Unidos e o Canadá. Nos anos 60/70/80 a Irlanda investiu brutalmente na educação...

E até se falou no “milagre irlandês”…
Isso deve-se ao fim da corrupção endémica, à melhoria das instituições e pelo facto de os seus cidadãos possuírem uma população bastante bem-educada e preparada para o mundo exigente em que vivemos. Não vou dizer que teremos de emular a Irlanda, mas o efeito gerado pela educação nas sociedades da Irlanda e da Coreia do Sul, por exemplo, também tem de existir por cá, para que o futuro seja melhor do que o presente.

O primeiro-ministro expressou o desejo que os salários subam 20 por cento. No atual contexto, tratou-se apenas de uma manifestação de boas intenções ou foi mais do que isso?
É um desejo que é legítimo. Todos queremos que os salários subam. Mas isso só acontece se as condições que já aqui falámos, melhorarem. Isso só será uma realidade com trabalho, não com um estalar de dedos. Para que o nível de vida melhore de uma forma sustentada para a maior parte dos portugueses é preciso, de facto, que façamos aquilo que não temos sido capazes de fazer. Por isso, a educação é um pilar essencial hoje e no futuro.
Este é o “timing” apropriado para se falar de uma experiência piloto com a semana de quatro dias?
Aceito que se faça uma experiência piloto, até porque estou particularmente curioso para observar os resultados práticos dessa iniciativa. Aliás, há muitos setores e empresas que já estão muito perto disso e onde poderá fazer sentido instituir essa dinâmica. É importante que esta experiência, a resultar, se torne consensual na sociedade e não a imposição de uma minoria.

E se for generalizada, deve ser aplicada nos setores público e privado?
Claro. Se é bom para uns, é bom para todos.

Leciona na Nova SBE desde 1988, quando regressou dos Estados Unidos, a instituição de ensino superior que ocupa melhor posição dos “rankings” do «Financial Times». Da experiência que tem “in loco”, é “só” a educação de qualidade o segredo para granjear este prestígio?
Esse é um dos aspetos essenciais. A escola tem a reputação que tem precisamente por prestar educação de qualidade. A fórmula de sucesso ao longo destes 40 anos tem sido, essencialmente, a qualidade, a abertura à sociedade civil e internamente premiar os que trabalham mais. A juntar a isto, a qualidade da investigação científica realizada pelos docentes e a adoção de um sistema de incentivos que premeia e distingue positivamente os mais esforçados. A Nova SBE, apesar de ser uma escola pública, apresenta, em diversos ângulos, uma lógica de Parceria Público- Privada (PPP), por ter conseguido aliar-se à sociedade civil, incluindo muitas empresas privadas, a maior parte nacionais, mas igualmente muitas estrangeiras, para, em conjunto, formular uma educação e uma investigação que conduzam, por um lado, à inovação de gestão e de processos nas empresas. Sem esquecer que a educação e o que é lecionado na faculdade deve aproximar-se, cada vez mais, das necessidades das empresas e dos organismos da administração pública.

A presença de muitos estudantes de outras nacionalidades no “Campus” de Carcavelos tem contribuído para a Nova SBE ser uma referência no país e no estrangeiro?
A Nova SBE tem ainda o condão de ser conhecida não só nacional, como além-fronteiras. Nos programas de mestrado temos cerca de 50 por cento de vagas ocupadas por estudantes estrangeiros, e não apenas provenientes da Europa. O professor Diogo Lucena dizia no início dos anos 90 o seguinte: «Eu não quero ser o melhor da minha rua. Isso é fácil. Eu quero é estudar com os grandes». É esta lógica de competitividade permanente e de gerar boas referências num universo mais amplo, que vai muito para além do nosso país, que sempre norteou esta casa, que tenho o privilégio de integrar há quase 35 anos.

 

Cara da Notícia

Secretário de Estado de Pina Moura

 

António Nogueira Leite nasceu em Aveiro a 3 de março de 1962. Economista de formação é atualmente administrador da HipogesIbéria, uma companhia de gestão de ativos para “distressed assets”. Professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa (atual Nova SBE), desde 1995, tendo começado a lecionar em 1988, foi consultor, gestor e administrador de diversas empresas, tanto no setor público, como privado, em especial no Grupo José de Mello. Presidiu ainda à Bolsa de Valores de Lisboa. Em termos políticos, desempenhou o cargo de secretário de Estado do Tesouro e Finanças, entre 1999 e 2000, era ministro das Finanças, Joaquim Pina Moura. Entre 2011 e 2013, foi vice-presidente da comissão executiva da Caixa Geral de Depósitos. Atualmente, colabora com o jornal e a rádio “Observador” e com o “Jornal de Negócios”.

Nuno Dias da Silva
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