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Diretor Fundador: João Ruivo Diretor: João Carrega Ano: XXVII

Manuel Caldeira Cabral, ex-ministro da Economia Portugal é um dos destinos mais atraentes para startups

26-04-2021

Aproximar ainda mais a ligação entre universidades e empresas e reforçar o apoio à ciência e à inovação é a receita de Manuel Caldeira Cabral para corresponder aos anseios da geração mais qualificada de sempre. O ex-ministro defende também um reforço dos gabinetes de transferência de tecnologia nas universidades.

Esteve três anos como ministro da Economia no primeiro governo de António Costa. O que é que lhe diz a experiência acumulada no cargo sobre a forma como enfrentar e superar a crise sem precedentes provocada pela pandemia?
Portugal está numa nova crise, diferente da crise financeira anterior. Penso que o que se fez na crise anterior pode dar algumas pistas e lições sobre o que caminho a seguir para ultrapassar esta fase. Entre 2010 e 2015, a política de austeridade aumentou a recessão em cima de uma situação de recessão, prolongou a crise e agravou problemas sociais, como o desemprego, que atingiu os 17 por cento. E levou ao êxodo de muitos cidadãos para o exterior o que não se via, pelo menos, desde os anos 60. Chegaram a sair do pais, por ano, mais gente do que sai da faculdade todos os anos. Foi uma erosão muito grande do nosso capital humano.
Entre 2015 e 2019 a política seguida foi de relançamento e de reposição de rendimentos. No fundo, uma lógica mais semelhante à política que a União Europeia (UE) está a propor para este período difícil. O que significa que as instituições europeias aprenderam com a anterior crise e com os erros cometidos ao nível da política monetária e basta ver a estratégia que está a ser seguida pelo Banco Central Europeu (BCE).

A UE, apesar das desarticulações que todos os dias se observam, esteve bem na forma como rapidamente preparou a “bazuca” e o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR)?
A UE atuou muito rapidamente. O PRR é apenas parte da resposta, mas não deixa de ser francamente importante, feita com fundos da própria União e com uma mutualização que se dizia impossível na anterior crise. O próprio governo alemão, que se pautou por grande conservadorismo na crise financeira, neste caso está a ter uma política orçamental expansionista, de forma a evitar que se repitam os efeitos passados.

Esta pandemia, para além do seu efeito destrutivo, contribuiu para acelerar tendências, nomeadamente no vasto campo da digitalização. Portugal está no comboio da frente desta transformação em curso?
A resposta a esta crise passa por diversas fases e instrumentos. É preciso começar por uma resposta social – reforçando os apoios sociais e alargando-os a grupos que estavam fora deles – a uma crise económica muito mais forte do que a anterior. Recordo que em 2009 a economia caiu 3 por cento e agora está a cair mais do dobro, 7 por cento. Uma outra perspetiva passa pelos instrumentos de apoio à manutenção de capacidade. Há setores como o turismo – em que somos e continuamos a ser competitivos – que tiveram dois anos muito difíceis, e que pode levar empresas viáveis a ter mesmo de fechar portas por não suportarem estar sem receitas. Seria uma perda de capital e valor muito grande. O “lay-off” e as moratórias foram importantes apoios, mas é preciso mantê-los e, se possível, em setores específicos, prolongá-los no tempo. Ao mesmo tempo é preciso não ignorar o processo de continuação da mudança, nomeadamente ao nível da digitalização da indústria. Não se pode perder o que já foi feito em termos das “startups” e do empreendedorismo. No domínio das empresas tecnológicas já se criou muito emprego jovem e, sublinho, emprego qualificado e bem pago.

Por falar em digital, como é que vê a generalização do teletrabalho?
As alterações societais têm de ser bem feitas. O teletrabalho é algo interessante e com um potencial que estava por aproveitar antes da crise ter eclodido, mas é preciso que se diga que não é solução para tudo. Funciona para equipas que já estão estáveis e se conhecem, mas é diferente para empresas que estão a crescer e onde falta mecanismos para criar o espírito de equipa, por exemplo. Nestes casos, podem surgir disfuncionalidades. Mas é preciso não esquecer que o teletrabalho trouxe uma excelente oportunidade para as empresas se reorganizarem e poderem trabalhar fora do escritório e em diversas zonas. Claro que há problemas, nomeadamente as pessoas que passaram a trabalhar mais horas e a receber emails e telefonemas para lá do seu horário de trabalho. Por isso, é consensual que se trata de uma realidade que tem de ser regulada e auto-regulada.

E o crescimento das vendas digitais?
Esse campo deu um salto enorme, mas revelou que, em muitos casos, empresas de grande dimensão estavam pouco preparadas para dar essa resposta. Foi bom que as empresas portuguesas tenham despertado mais para esta realidade, que se alargou a todo o mundo. Mas é importante que a nossa indústria aproveite esta oportunidade, desenhando e concebendo produtos únicos e personalizados, recorrendo a plataformas de comércio digital que explorem todo as potencialidades do comércio digital. A nossa indústria tem o ensejo soberano de capturar o valor da produção de alta qualidade que Portugal tem em muitos setores.

É sabido que o tecido empresarial português é muito heterogéneo. As empresas ficariam a ganhar se apostassem mais numa lógica de concentração empresarial?
A dimensão das empresas portuguesas é um problema. Nomeadamente para competir em novos mercados, ter mais dimensão é uma ajuda. A fusão e a colaboração entre empresas é, por isso, um caminho interessante. Creio, contudo, que a digitalização pode permitir que se salte por cima das dificuldades criadas pela reduzida dimensão. Como? Há empresas de pequena dimensão que podem ser fortemente competitivas e afirmar-se nos mercados digitais e nalgumas áreas de nicho. Portugal tem bons exemplos: o calçado de luxo, o calçado de proteção profissional e também o caso da empresa “Nelo”, que produz caiaques. Mais de 80 por cento dos atletas que competiram nos últimos jogos olímpicos tinham caiaques produzidos por esta empresa portuguesa.

Pode estar em curso um processo de darwinismo empresarial em que só os mais fortes e capazes resistem a este chamado “tsunami”?
A crise de procura que ninguém previa, assente em fatores conjunturais, como a crise pandémica e os sucessivos confinamentos, colocaram em causa modelos de negócio e não propriamente o facto de as empresas serem mais frágeis. Pode estar a acontecer a destruição de capital físico e humano em empresas que são viáveis e em trabalhadores jovens que são importantes para o futuro da empresa. É aqui que os apoios às empresas e ao emprego são importantes. Dito isto, não acredito em processos “darwinianos” ou “schumpeterianos”, de destruição criativa, apesar de eles poderem acontecer em crises como a que estamos a atravessar.

Afirma que, apesar do impacto da crise, o turismo é um setor com futuro. A aposta na diversificação económica e na reindustrialização pode ser a receita para relançar o país em termos de desenvolvimento económico?
O relançamento da reindustrialização deve estar apoiado em aspetos que devem ser aproveitados e reforçados, nomeadamente ao nível da política de cooperação entre universidades e empresas e reforço da inovação. A inovação colaborativa – que se fez com o “Programa interface” – é fundamental para aproximar empresas e universidades. Esta resposta à crise não pode esquecer o reforço da inovação e do investimento. Quero recordar que entre 2015 e 2019 – período em que o livro que escrevi reporta – já se registava um crescimento diversificado dos nossos setores exportadores. Os setores que então mais cresciam situavam-se nas áreas dos Instrumentos de precisão, setor automóvel e tecnologia média/alta. Quero aqui recordar projetos de grande dimensão como foi o caso que envolveu a Bosch em Braga e a Universidade do Minho, juntando mais de 600 investigadores e engenheiros no âmbito da investigação e inovação de larga escala. No âmbito da condução autónoma grandes construtores como a BMW, a Volkswagen e a Mercedes abriram centros de investigação e inovação no nosso país. Noutros âmbitos, também tivemos crescimentos na exportação de “software”, produtos agrícolas como os óleos, os azeites e as frutas e os legumes frescos. Isto para lhe dizer que antes da crise a aposta na diversificação já tinha sido muito grande.

Com tantas alternativas, o turismo pode então ser uma carta fora do baralho?
O crescimento de um setor ou atividade não substitui o outro. Agora os países mais competitivos no turismo são todos países mais desenvolvidos. Isto é factual. O turismo depende de fatores críticos, todos eles muito complexos e que estão longe de se esgotar nas infraestruturas ou no clima. As vertentes da segurança e dos transportes, por exemplo, não podem ser negligenciadas. No que diz respeito ao emprego em empresas tecnológicas nos últimos três anos foram criados 40 mil postos de trabalho – Muitos deles jovens qualificados que pensavam sair do país. Mas o emprego gerado pelo turismo é igualmente muito importante. Veja, por exemplo, o caso do cozinheiro, que é uma profissão com imenso valor em qualquer parte da Europa, ou um anfitrião na indústria do acolhimento turístico, que saiba estar e fale várias línguas, é igualmente valorizado. Temos, por isso, de possuir uma visão equilibrada. Tudo é importante. Os exemplos que lhe dei são reveladores do imenso potencial e têm o condão de criar empregos diferentes e em zonas distintas do país, promovendo novos polos de desenvolvimento regional.

Defende que, mesmo no contexto de crise, o apoio à ciência, à inovação e à investigação não deve ser beliscado. Teme uma eventual retração nas verbas alocadas?
Entre 2011 e 2015 tivemos uma diminuição no orçamento em ciência e inovação. Defendia-se que era preciso cortar nas gorduras e na despesa corrente, mas o que se viu é que também se cortou no músculo – ou seja, no investimento – e também no cérebro – ou seja, na capacidade científica e na inovação. No “ranking” do “Inovation Scoreboard” caímos para o 18.º lugar, quando antes ocupávamos o 15.º lugar. Depois de 2015 foi feito um grande esforço e escalámos para a 12.º posição, entrando para o grupo dos «fortemente inovadores», ultrapassando muitos dos nossos maiores concorrentes, ou seja, nações do Sul e do Leste da Europa. Atualmente, das cinco regiões mais inovadoras do Sul da Europa Portugal tem três, a Itália uma e a Grécia também uma. Significa isto que em poucos anos progredimos muito na nossa capacidade de inovação. Veja que Portugal é um dos destinos considerados mais atraentes para “startups”, com especial destaque para as cidades de Lisboa e Porto.

Que quota parte de responsabilidade e mérito têm as universidades, enquanto centros de saber, para estas posições meritórias que ocupamos ao nível da inovação?
Nos anos 90 e no início do século XXI, o país fez um investimento muito grande na melhoria das suas universidades, alargando a base de expansão de estudantes do ensino superior – em 20 anos, passámos de 8 para 25 por cento de pessoas com licenciatura na população ativa. As universidades portuguesas, que raramente apareciam nos “rankings” internacionais, surgem agora com cinco universidades e uma delas posiciona-se mesmo nas 200 melhores do mundo.

O rumo de internacionalização do ensino superior deve continuar a ser uma prioridade?
Claramente. As universidades portuguesas têm hoje muitos alunos estrangeiros e isso não é obra do acaso. É fruto de um esforço muito interessante. Mas não só. Muitos professores portugueses têm contactos no estrangeiro, seja através de doutoramentos ou de publicações de investigações com colegas fora de Portugal. Este trabalho permitiu-nos criar uma capacidade científica muito grande. O papel das universidades é útil e fundamental à inovação empresarial. Estou em crer que devemos reforçar esta vertente com os fundos que vamos ter à disposição. E, quero destacar que nos últimos anos as empresas desenvolveram um caminho muito assinalável ao aumentar a colaboração com as universidades. Já são milhares as empresas – grandes, pequenas e “startups” – que colaboram de perto com as universidades em projetos de diversa natureza. Vemos, por isso, uma ligação muito grande entre as universidades e as empresas, mas que terá de ser reforçada. O país tem de criar mais oportunidades para corresponder à geração mais qualificada do pais, mas isso só se consegue investindo em conhecimento e criando condições para que empresas mais tecnológicas e inovadoras criem mais valor, de forma a sermos competitivos em certos nichos de mercado. Precisamos de produzir com qualidade e subir na cadeia de valor, para criar mais empregos e certamente mais qualificados e melhor remunerados. A reindustrialização do país pode ser alavancada pela capacidade do nosso sistema científico e tecnológico se situar um passo à frente de outros países, nomeadamente do Sul e do Leste da Europa. E acredito que o novo quadro de apoios europeus vai permitir que esta área cresça ainda com mais força.

Pensa que temos uma melhor estrutura para evitar o êxodo de jovens que se registou há uma década?
Continuará sempre a haver jovens a querer abandonar Portugal. Num país que se quer internacionalizar é normal e positivo. Mas o importante é que o país onde estes jovens nascerem crie oportunidades para que eles tenham ensejo de fazer a melhor escolha para a sua carreira. Temos de aproveitar este recurso que é ter a geração mais qualificada de sempre. E importa também destacar que podemos atrair muitos estrangeiros, que têm oportunidades e gostam de cá estar, porque se sentem bem acolhidos.

Já referiu que as empresas e as universidades estão mais próximas. Mas a formação dos diplomados que saem dos centros de saber já está mais aproximada das necessidades do nosso tecido empresarial?
Como disse anteriormente, houve um processo de aproximação entre universidades e empresas, mas há ainda muito trabalho a fazer. O estimular da inovação colaborativa desempenhou e desempenha um papel fundamental e as empresas souberam responder. Mas há ainda muitos outras empresas que se podem juntar a esta dinâmica. Nos setores industriais é preciso passar a mensagem, cada vez com mais força, que a colaboração com as universidades, os politécnicos e os centros de “interface” é uma prática que deve chegar a todas as empresas e não apenas a algumas. Ao nível das universidades é importante que se dê mais enfoque a estas carreiras de âmbito tecnológico, a par com as carreiras centradas no ensino e na investigação. Hoje em dia quando se vai a um “site” de uma qualquer universidade é importante ver os “papers” publicados, mas especialmente saber se determinada “startup” surgiu como “spin-off” de uma universidade. As inovações saídas dos laboratórios das faculdades estão cada vez mais na base de avanços tecnológicos (farmacêuticos, na engenharia, nas ciências sociais, nos “drones” no que se quiser) e é isso que hoje merece destaque. Por isso, defendo um reforço dos gabinetes de transferência de tecnologia nas universidades. As universidades, estejam em que país estiverem, não são fechadas ao exterior e têm um papel no mundo.

Era titular da pasta da Economia quando decorreram as primeiras três edições da “Web Summit”. Os frutos deste evento já chegaram ou ainda vamos ter de esperar?
Alguns frutos da “Web Summit” não se fizeram esperar. Um evento desta magnitude, ao atrair 70 mil pessoas até Portugal, deu de imediato lucro, face ao impacto em diversas áreas da economia do país, ao nível da hotelaria, restauração, etc. Contudo, a “Web Summit” sempre foi vista como estratégica e não numa perspetiva de curto prazo. E é isso que explica que o contrato com os organizadores tenha sido prolongado por 10 anos. Mas o mais importante da “Web Summit” foi o contributo que deu para melhorar a imagem de Portugal no exterior, reposicionando Lisboa no centro das empresas tecnológicas, da criação de “startups” e apoio ao empreendedorismo. Quero recordar que em meados da década passada as “startups” eram apelidadas de projetos «giros e engraçados» e posteriormente o crescimento foi de tal ordem que algumas passaram a valer mais de mil milhões de euros. Na verdade, em Portugal, neste momento, temos quatro “startups” a valerem mais do que isso. O ecossistema de “startups” nacional está muito mais maduro e o país continua a ser muito atrativo para que certas empresas fixem aqui os seus centros tecnológicos. O mundo passou a olhar para Portugal com outros olhos, fruto do reforço da credibilidade da nossa indústria e da expansão da nossa tecnologia além-fronteiras.

 

Cara da Notícia

Memórias da “geringonça”

 

Manuel Caldeira Cabral nasceu a 28 de abril de 1968, em Lisboa. Foi durante três anos ministro da Economia no primeiro governo de António Costa e é atualmente administrador da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões. Desde 2004 integra como docente o departamento de economia da Universidade do Minho. Foi eleito deputado do PS pelo círculo eleitoral de Braga, em 2015. “Construir uma alternativa – a política económica da «geringonça» e a resposta à crise da covid-19”, uma edição da Dom Quixote, é o título do livro, com prefácio do primeiro-ministro, que acaba de lançar. Um livro que conheceu um lançamento atribulado, visto que tinha data marcada para 25 de março de 2020, com a presença de António Costa. O adiamento da cerimónia e do lançamento permitiu ao autor atualizar a obra com os efeitos da pandemia. Um ano depois o livro vê, finalmente, a luz do dia. São 573 páginas de leitura sobre a sua passagem pelo governo e sobre como algumas medidas tomadas entre 2015 e 2018 podiam hoje ser replicadas.

Nuno Dias da Silva
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