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Diretor Fundador: João Ruivo Diretor: João Carrega Ano: XXVII

Opinião Livros & Leituras

14-02-2023

Poesia Completa (Quetzal), de Jorge Luis Borges, com tradução de Fernando Pinto do Amaral, reúne a obra poética do argentino, mais conhecido como contista, ensaísta e crítico, desde os alvores de 1923 até 1985. Poeta de recorte clássico e do rigor formal onde o fascínio pela tradição e pelo lado obscuro do mundo e das coisas, das cosmogonias, da memória oculta dos labirintos, dos espelhos e das bibliotecas infinitas, das estranhas filosofias da mente, dos textos de todas as latitudes e tempos,  vislumbrando ecos da eternidade, tudo decorre com serena amplitude, como se uma música inaudível tivesse ao alcance de ser escutada.

A Família Netanyahu (D.Quixote), de Joshua Cohen, Prémio Pulitzer de Ficção 2022 e Prémio Nacional do Livro Judaico 2021, é um livro hilariante, de um brilhantismo a toda a prova. Baseando-se num episódio pessoal que Harold Bloom lhe contou, sobre a extravagante família Netanyahu, a do actual primeiro-ministro israelita, cujo pai foi um historiador controverso, autor de uma descabelada tese sobre a Inquisição ibérica, Cohen constrói um enredo que além de ser uma comédia é um repositório crítico sobre a América e do seu pequeno mundo universitário. Com um virtuosismo que pede meças a Bellow, Roth e Nabokov, é muitíssimo engenhoso, lúcido e mordaz.

Oh, William! (Alfaguara), de Elizabeth Strout (n. 1956, Portland), é mais uma obra da magistral criadora de Lucy Barton (“O meu nome é Lucy Barton” e “Tudo é possível”, ambos na mesma editora), escritora que se debate com o reencontro como o ex-marido, com quem teve duas filhas, agora que a idade avança, e as descobertas de coisas não ditas, e nem sequer entendidas, de lembranças do passado pessoal, de relações familiares e visões que se apresentam com a claridade do mistério, num registo de um realismo discreto e subtil, pequenos nadas que se libertam do esquecimento, num manancial de descobertas surpreendentes, em epifanias que só estão alcance dos grandes escritores.

Sonechka (Cavalo de Ferro), de Ludmila Ulitskaya (n. 1943, Urais), Prémio Médicis, foi o primeiro livro publicado desta escritura russa que não tardou a impor a sua voz literária, com numerosas distinções em todo o mundo. A protagonista desta história é uma rapariga que se refugia na leitura, apaixona-se por um pintor libertado dos campos do gulag, vivendo uma amor que tem alguns desafios pela frente. História subtil e encantatória , numa toada poética que acompanha a vida em regime soviético e o seu fim anunciado.

Medeia e os Seus Filhos (Cavalo de Ferro), de Ludmila Ulitskaya, é outro portento literário saído da pena da escritora russa. Medeia Mendes é uma velha senhora que vive na Crimeia, descendente de gregos e viúva de um judeu, e a matriarca de uma vasta e complicada famíla. A vida do século XX russo é-nos apresentada pelas vivências e memórias das gerações antigas e actuais, num retrato impressivo das vidas que atravessam regimes políticos e lançam uma luz sobre as décadas e as agruras dos que não se resignam. Uma figura memorável e uma saga familiar, com inúmeras ramificações, onde se destacam, entre outros membros da família, Gueorgui, Masha, e por fim, a narradora.

O Princípio de Tudo (Bertrand), de David Graeber e David Wengrow, tem como subtítulo “Uma nova história da humanidade”. Como referem os autores, um antropólogo e outro arqueólogo, que trabalharam uma década no livro: “ Neste livro não apresentamos uma história da humanidade, mas convidaremos o leitor a entrar numa nova ciência da história, a qual devolve aos nossos antepassados a sua inteira humanidade”. A perspectiva apresentada é inovadora e derruba inúmeros dogmas e ideias falsas de como se organizaram as sociedades humanas ao longo do tempo, desde a origem da agricultura às cidades e estados. Nada do que foi assumido como verdadeiro por gerações anteriores ficará incólume despois desta leitura: “Sabemos, agora, que estamos na presença de mitos”.

Como Viver – A vida de Montaigne (Quetzal), de Sarah Bakewell, é uma fabulosa introdução à vida e ao pensamento de Michel de Montaigne, autor dos celebrados “Ensaios”, fazendo deste livro um guia por excelência, onde a autora vai colher vinte respostas ao desafio de “como viver bem com os outros e encontrar um sentido para a vida”. O livro segue a vida de Montaigne, abraçando os seus pensamentos, que legou à posteridade como o exemplo de escritor que se revelou como um discípulo do epicurismo, estoicismo e pirronismo, vertidos para o século XVI, mas que fala aos vindouros com uma voz clara que afirma: “Só sei que nada sei e mesmo sobre isso tenho dúvidas”. Um contributo essencial para ler a sua obra.

Montaigne  - Ensaios: Volume I (E-Primatur), de Montaigne, escritos entre 1570 e 1592, aqui apresentados pela primeira vez na sua versão integral entre nós, são o repositório da vida de um homem que em tempos difíceis seguiu o “amor fati”, analisando-se a si mesmo como sujeito de corpo inteiro, para “registar alguns traços do meu carácter e dos meus humores”, sendo mais do que isso: é uma “profunda reflexão e lúcida acerca daquilo que une os Homens de todos os tempos”. Talvez pelo carácter inédito deste exame, escorado nos filósofos helenistas do passado, que o livro tenha sido, e continue a ser, uma tão grande influência, desde Shakespeare a Nietzsche, de Montesquieu a Emerson, de Freud a Zweig, de Virginia Woolf  a Camus. Uma leitura essencial para o bem viver, que não deixa de assombrar, ainda hoje, pelas suas qualidades literárias e humanas.

O Mago do Kremlin (Gradiva), de Giuliano da Empoli, vencedor do Grande Prémio do Romance da Academia Francesa 2022, dá corpo à vida do enigmático Vadim Baronov, artista e realizador de televisão, que se tornou a eminência parda de Putin, encenando a ascensão ao poder do novo czar. Ecos de “Nós”, de Zamiatine, sobrevoam a longa confissão do ”novo Rasputine”, e os meandros do poder e da luta no seio dos cortesãos, bem como da propaganda que sustém o regime, desde o começo da caminhada até ao desencanto, revelando os bastidores e as manobras das personagens que vivem à sombra dos desejos do czar, num romance que é um retrato implacável do putinismo e do seu regime.

José Guardado Moreira
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