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Diretor Fundador: João Ruivo Diretor: João Carrega Ano: XXVII

Opinião LIVROS & LEITURAS

15-02-2022

O Grande Tour, que as classes abastadas europeias, com bastante tempo livre, ócio e muito cabedal, inventaram para educar os seus jovens rebentos, ilustrando-os sobre as belezas da Antiguidade e do Renascimento, teve como consequência o início de uma época de viagens para outras paragens e gentes de costumes diversos. Hoje em dia, o turismo low cost, caricatura pornográfica dessas viagens de formação de antanho, está destruindo tudo em que toca. Como se sabe, a curiosidade matou o recato.

Outras Paragens, uma pequena antologia (Quetzal), de Eça de Queirós é uma pequena pérola que recolhe páginas memoráveis da obra do escritor, desde os seus romances às cartas, jornalismo e crónica. É sabida a influência que tiveram as viagens em Eça, ele que foi cônsul em Cuba, Inglaterra e França, sendo que a viagem ao Egipto teria sido o ponto de inflecção, no estilo de abordagem e na prosa, já não romântica mas de um realismo matizado pela sua verve incomparável de mordacidade, lirismo e acerto. As observações aqui recolhidas desde as paisagens egípcias, ou  sobre o desenrolar da guerra sino-nipónica, as diferenças entre chineses e japoneses, e tantas outras, colhidas ao sabor do acaso sobre a vida das grandes metrópoles das quais valia a pena falar (Londres e Paris), são um repositório delicioso e sempre actual. “Antigamente contava-se a viagem quando se tinha viajado. Hoje empreende-se a viagem unicamente para escrever o livro”.

Do Chiado a Veneza (Tinta-de-china), de Júlio César Machado (1835 – 1890), escritor e amigo de Camilo, foi um folhetinista conhecido no seu tempo, além de autor de contos, romances e peças de teatro. Em vésperas da Terceira Guerra de Independência, viajou em 1866, para a península italiana, dando origem a este livro que foi best-seller na época. Pouco lhe importam as ocorrências políticas, antes dedicando o seu tempo ao teatro lírico e aos salões onde a nobreza local o recebia. “A ligeireza de crónica de costumes, dá uma aragem de frescura a um livro tão irremediavelmente (e deliciosamente) datado como este”, do prefácio.

Um Caminho no Mundo (Quetzal), de V.S. Naipaul (1932 – 2018), é uma viagem pelas sendas da História de personagens extravagantes, apanhadas pelas correntes da vida, desde Walter Raleigh e sua infausta expedição ao rio Orenoco em busca do mítico El Dorado, a Francisco Miranda e a falhada tentativa de invasão da América do Sul, entre muitos outros relatos por mares e terras estranhas, que é também a súmula de uma vida de escritor cheia de aventuras, deambulações e descobertas.

 

Rua de Sentido Único (Relógio d´Àgua), de Walter Benjamin (1892 – 1940), é composto ainda por ”Crónica Berlinense” e “Infância Berlinense por volta de 1900”, e fazem parte da obra do fulgurante trajecto do escritor, pensador e crítico da modernidade. São peças de memórias, em que a grande metrópole moderna é o palco para a leitura dos sinais inscritos na subjectividade objectiva, “que permitem ir muito além da aparente solidez de um mundo com fissuras potencialmente catastróficas”, que o tempo se encarregou de comprovar da forma mais brutal. São “textos poético-ensaísticos” que apontam para um modo cândido/profundo de auscultar a realidade. “Torna a tua pena arisca à inspiração e ela irá atraí-la com a força de um íman”.

Tomás Nevinson (Alfaguara), de Javier Marías (n. 1951, Madrid) são páginas onde acompanhamos o protagonista, antigo agente secreto ao serviço do Reino Unido, depois de o termos conhecido em Berta Isla. Regressado a Madrid, é desafiado pelo antigo chefe a deslocar-se a uma cidade nortenha para descobrir, e assassinar, uma misteriosa mulher norte-irlandesa, que promoveu com a ETA diversos atentados bombistas. Os dilemas éticos de Tomás estão no centro da narrativa, ao mesmo que tempo que avalia a sua própria vida, que começara por um embuste e uma armadilha, na qual se fundou uma vida de perigos e enganos. A procura da sua verdade íntima parece difícil de atingir, ao mesmo tempo que se questiona sobre as consequências dos seus actos, passados e presentes. Um livro que é a demonstração da mais alta mestria de um escritor ímpar, com uma qualidade de escrita envolvente, que o elege como o grande romancista das letras espanholas. 

Os Exércitos da Noite (D.Quixote), de Norman Mailer (1923 – 2007), agora reeditado, é um dos mais empolgantes livros do autor, que alcançou com este título o Prémio Pulitzer e o Prémio Nacional de Livro. Em 21 de Outubro de 1967, realizou-se uma marcha sobre o Pentágono, em protesto conta a guerra do Vietname. Houve pancadaria da grossa e centenas de presos, onde Mailer se incluía. Daí resultou este testemunho escrito na primeira pessoa, e na pessoa do repórter que descreve os extraordinários acontecimentos do dia, num registo que oscila entre o relato e a ficção dos factos vividos. Páginas de um escritor enquanto actor da história, que se desenrola como uma reportagem em tempo real, e um documento que se mantém bem vivo e contemporâneo.

José Guardado Moreira
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