Ano após ano a história repete-se como se não houvesse alternativa. Os incêndios florestais tomam conta do país, sobretudo das zonas mais despovoadas que, por força do abandono que o Estado tem dado a esses territórios, ao longo de várias décadas, estão muito recetivas à ocorrência de fogos rurais.
As instituições de ensino superior e os seus investigadores, repetidamente, apontam caminhos e soluções, desenvolvem meios de prevenção, combate e vigilância, propõem novas formas de rentabilidade na floresta (com projetos de investigação no terreno, como a recolha de resina).
A rede de universidades e politécnicos, que durante a pandemia de Covid-19 foi decisiva no modo como Portugal deu resposta a algo desconhecido, está pronta – com provas dadas no terreno – para abraçar, de forma integrada e abrangente (sem políticas partidárias) o combate a este flagelo que atinge famílias, empresas, pessoas, animais. Um flagelo que nos queima o corpo, nos destrói a alma e a essência dos territórios. Diria mesmo que a academia tem sido um farol que indica caminhos e soluções.
O problema é que o Estado apaga, repetidamente, essa luz. O interior do país está despovoado. Não há gente nas aldeias, nem nas vilas e nas cidades são cada vez menos os que nelas habitam (e menos seriam se não fossem as instituições de ensino superior existentes). Nas últimas quatro décadas fecharam-se postos da Guarda Nacional Republicana, de correios, de saúde, escolas primárias, tribunais, hospitais e outros serviços como os guardas-florestais. Mas também não houve investimento em vias de comunicação dignas. Não foi assim há tanto tempo, mas foi o suficiente para chegarmos onde estamos.
O Estado divorciou-se da maioria do território nacional. Deixou quem lá vivia e vive sem chão, sem perspetiva de um futuro justo. É de justiça e igualdade que se trata. As autarquias fazem o que podem. Reinventam-se, criam programas de saúde ao domicílio, de apoio psicológico e procuram novas empresas, mas têm que andar ao “beija mão” seja qual for o Governo.
Sem gente no território tudo fica mais complicado. Os herdeiros da floresta não conhecem as suas terras, não há ordenamento, o pinhal e os eucaliptos crescem desordenadamente. Não se introduzem novas espécies mais resistentes ao fogo, compensando quem investe no setor. Um setor que em Portugal tem 19 mil 500 empresas, emprega 92 mil pessoas e tem um impacto na balança comercial do país de 2,6 mil milhões de euros.
A limpeza não é feita, é imposta. Quem não a faz leva multa, mas a floresta continua por limpar. O Estado prefere receber o dinheiro das coimas do que limpar. É certo que não se pode atuar em terrenos privados, mas a questão dos fogos rurais exige um pacto de regime e uma lei que permita que o próprio Estado limpe a floresta em vez de aplicar as multas, cobrando, aos proprietários que não o fizerem, o valor respetivo. E mesmo que não cobre esse serviço, não ficará prejudicado, pois além de preservar a floresta e prevenir incêndios, tornará o combate menos difícil e menos dispendioso, e mitigará os efeitos das alterações climáticas.
Os meios de combate aos incêndios (humanos e materiais) serão sempre insuficientes quando uma grande parte do país está a arder. São precisos mais? claro que sim. Mas, não sendo especialista na matéria, considero que a prevenção será o melhor caminho. Enquanto Portugal não combater este flagelo com um pacto de regime estaremos, anualmente a chorar sobre a terra queimada.
Em 2003 vivi, no terreno, uma das maiores tragédias que assolaram o concelho de Oleiros. Um incêndio devastador entrou dentro da vila e queimou uma parte significativa do concelho. Houve mortes. Arderam casas de habitação. Em 2017 o inferno regressou com vontade de destruir o que estava verde. Arderam mais casas deixando família na rua. Morreram pessoas. 2025 está a ser um dos piores anos no que respeita a incêndios florestais. Houve apoios e haverá apoios a quem tiver prejuízo. Mas serão sempre insuficientes e chegarão tarde. Muitos ficam retidos na burocracia do sistema.
Na televisão assiste-se, qual reality show, aos fogos em direto. E quando está esgotada a notícia dos fogos portugueses, apresentam-se os da Grécia ou de Espanha. É uma forma de informar com a qual não concordo e que acende o desejo aos pirómanos. Uma coisa é dar a notícia, com factos e rigor, outra é fazerem-se diretos como se se tratasse de um relato de futebol (quem está no terreno cumpre ordens e faz o que pode),. Depois, seguem-se comentários, em estúdio, horas a fio. Devemos olhar com seriedade para esta questão. Todos, não apenas os órgãos de comunicação social, mas também as entidades oficiais e quem tem responsabilidades governativas.
Ver e ouvir uma ministra ler um comunicado, recusar responder a questões dos jornalistas e dizer “vamos embora” confirma aquilo que nestas últimas décadas foi a prática nos territórios do interior do país: os seus filhos foram embora por falta de condições e os governos nacionais, que deveriam tratar diferente o que é diferente, também foram embora como a ministra Maria Lúcia Amaral.
Pior em comunicação só mesmo o antigo ministro do Ambiente, Amílcar Theias, que em entrevista que lhe fiz, em 2003, no meio do incêndio em Oleiros, acusou os antigos combatentes do ultramar de terem granadas e das mesmas provocarem incêndios: “... não excluo que tenha havido mão criminosa ou que tenha havido negligência, porque há muita gente que serviu nas ex-colónias e que inconscientemente levou armas ou granadas para casa”, referiu-me na altura.
Mas, pelo menos, Amílcar Theias não foi embora. Mantêve-se ao lado dos bombeiros, das autarquias e da população que via o fogo queimar-lhes a alma e o território, destruindo economias e sonhos das suas vidas, dos seus filhos e netos, que a floresta era (e é) o banco dessas gentes de trabalho árduo. De gente que nunca desiste apesar de o Estado, por vezes, acenar com a bandeira branca de quem se rende ao problema ...
PS: A propósito das declarações de Amílcar Theias, refira-se um aparte: só eu e dois colegas da comunicação social acompanhámos o ministro ao teatro das operações. Chegados ao quartel dos Bombeiros de Oleiros os jornalistas da TSF e da Antena 1, que optaram por não arriscar em ir para o terreno, pediram-me o som da conversa. Facultei-o com a promessa de que seriam referidos os créditos.
A TSF não cumpriu e apresentou o assunto aos ouvintes como um exclusivo e muitos órgãos de comunicação social e a própria Agência Lusa assim o reproduziram. Não foi certamente o calor do momento, mas sim a falta de honestidade e ética em informar com o trabalho dos outros. Eles que diziam ir até ao fim da rua e ao fim mundo, ficaram-se pelo quartel… e partilharam algo como um exclusivo seu, quando na verdade era meu e dos outros dois colegas.