O lançamento do seu último trabalho é o fio condutor para uma entrevista sobre temáticas que a todos convocam.
«Um Gelado Antes do Fim do Mundo» é o seu quarto trabalho, recentemente lançado. Trata-se de um contributo criativo para este inquietante ar dos tempos em que vivemos?
Escrevo sempre sobre o que me preocupa e o que está à minha volta. Por isso, à semelhança de todos os meus discos este é mais uma forma de demonstrar combatividade e resistência. Este, porventura, de uma forma mais intensa, o que se explica pelo facto de as coisas estarem mais complexas, tensas e extremadas. Por isso, esta minha reação artística e criativa pretende aguçar o espírito crítico, mas não pretende ser, de forma alguma, catastrofista.
Acredita que há margem para ter esperança?
Através da poesia e da música é sempre possível renovar os votos com a esperança, recarregar as baterias e mobilizar as pessoas para a luta, ainda para mais numa altura em que vivemos num tempo de grande adormecimento e de grande cinismo, em que parece que nada vale a pena. No mundo atual a poesia é das poucas coisas que nos remete para uma dimensão emocional, profundamente humana da existência e que pode significar o resquício de uma era que está a terminar com o aparecimento da inteligência artificial e da robotização. Mas acredito convictamente que a poesia é o último reduto do humanismo.
A expressão criativa e artística pode mudar o atual estado de coisas?
Para mim, o antídoto para o adormecimento passa pelo olhar sensível e poético que busca o belo, com “B” grande, e que pode ser resgatado através da música e da poesia.
As alterações climáticas, a toxicidade das redes sociais, as questões de género e a emergência da extrema-direita são temáticas presentes nos seus trabalhos. É uma atitude pragmática e concreta que pode atacar estes problemas de frente?
O ser humano vive momentos de muita ansiedade, confrontado com problemas esmagadores, que alcançam uma escala quase impossível de abarcar. Vivemos numa espécie de civilização suicida que vê o futuro com falta de perspetiva e otimismo. Mas também cedemos a esse adormecimento, muito por culpa das redes sociais que são uma alienação, mas que se disfarçam sob a capa de veicular muita informação e permitir o acesso simples a tudo. É uma montanha russa absurda, em que tudo se banaliza, misturando tudo no mesmo “feed”, como se o genocídio na Palestina fosse o equivalente a um prato de “sushi” ou um vídeo com um gato fofo. Isto tudo no mesmo patamar de importância, o que faz com que não nos mostremos impactados por quase nada. Paralelamente, as nossas democracias estão em perigo. Prossegue o seu processo de erosão, fruto da desinformação e das “fake news”, do enviesamento das bolhas de opinião criadas pelos algoritmos, a desvalorização da ciência, dos factos e da verdade, a emergência das teorias da conspiração, etc. É um “cocktail” muito perigoso.
É nessa espécie de caos à nossa volta que as artes podem ser um baluarte de esperança?
Sim, estimulando o espírito crítico e a esperança. A cultura e a expressão artística permite-nos ser mais solidários e empáticos, afastando-nos das trincheiras e da fragmentação em que temos caído.
A propósito do recente episódio da violação em Loures, escreveu que as «redes sociais não são a causa». Então onde está o busílis da questão?
As redes sociais são o catalisador e o amplificador do problema. A causa está, obviamente, na nossa cultura misoginia. Este problema é milenar, fundador da nossa civilização, não nasceu com a internet. E só tem este potencial de violência porque está profundamente enraizado e normalizado no seio da nossa sociedade. Não é à toa que os números da violência doméstica são assustadores; não é à toa que existe benignidade nas sentenças de abuso sexual e violação em Portugal, com muitos réus corridos a penas suspensas. Não é à toa o duplo critério para aquilo que é a liberdade sexual de homens e mulheres. E também não é à toa que as mulheres são ensinadas, desde tenra idade, a andarem na rua com cautela, vigilantes e com medo. Há uma espécie de inimputabilidade da testosterona como se os homens fossem uns seres indomáveis e nós, mulheres, é que tivessemos de ser obrigadas a cercear a nossa liberdade. A internet amplifica uma cultura que celebra o homem predatório, garanhão e conquistador. E os miúdos desta geração têm uma forma de ganhar e amplificar isto através das redes sociais. No fundo, têm um palco.
E os “likes” e os seguidores nas redes sociais são uma espécie de prémio...
De prémio e de recompensa, porque como referi as redes sociais permitem a rentabilização de várias maneiras. A internet só vem agravar um problema cultural, dando-lhe contornos ainda mais perigosos. O caso da violação de Loures é paradigmático: a violência contra as mulheres vai para além do ato e prolonga-se para a sua exibição e exposição pública, com milhares de pessoas dispostas a assistirem àquilo, sem se dignarem a fazer a denúncia. E agora temos os” influencers”, que se orgulham de promover uma misoginia ideológica, aproveitando a baixa auto-estima de alguns rapazes e adolescentes, capitalizam as suas inseguranças e ressentimentos, vilanizando e desumanizando as mulheres, normalizando a violência que querem impor. Isto é meio caminho para inquinar toda uma geração que cresce a ouvir este tipo de discursos e que por estar numa idade muito influenciável, tarde ou cedo, vai replicar aquele modelo de comportamento.
Entra aqui a questão da formação dos jovens. Esses discursos combatem-se, por exemplo, com mais educação para a tolerância?
Creio que há várias frentes de atuação. Para começar, é preciso habituar a Justiça portuguesa a fazer cumprir a lei de uma forma exemplar, sem contemplações e sem condescendência. O problema não está em aumentar as penas, mas fazer aplicar as sentenças ou fazer com que os casos cheguem a julgamento.
A educação para a cidadania – sempre alvo de grandes batalhas políticas e culturais – é uma questão essencial. Há esta ideia de que os direitos das mulheres são uma questão ideológica quando, na verdade, são uma questão de direitos humanos. Enquanto olharmos isto como se fosse um Porto-Benfica continuaremos a olhar sempre para o lado errado da discussão. Na verdade, estamos todos afetados pela mesma cultura. As mulheres são as principais vitimas da cultura misoginia e machista, mas é preciso que se diga que os homens não saem ilesos, visto que isso afeta a sua saúde e o seu comportamento. Os estudos recentemente publicados apontam que nas próximas gerações as mulheres têm tendência para serem mais progressistas, feministas e politizadas, enquanto os rapazes têm tendência a serem mais conservadores, a votarem na extrema-direita e a partilharem pensamentos muito mais retrógrados em matéria de questões de género e direitos das mulheres e das minorias. Isto é um retrocesso civilizacional promovido pelo reacionarismo propagado pelo discurso de ódio e de ressentimento, e que já está a ter consequências na vida real.
Tem um filho ainda de tenra idade, 6 anos. Sabendo que atualmente o acesso à internet é cada vez mais precoce, como é que pensa gerir o seu acesso às redes sociais?
Vou tentar retardar o mais possível o acesso dele à internet e às redes sociais. Quando tal for inevitável, tentarei monitorizá-lo e contextualizá-lo. No fundo, fazer o trabalho que compete a um educador. Infelizmente, muitos pais demitem-se de fazê-lo, por exaustão, falta de consciência dos perigos e até por falta de literacia. Em suma, creio que é fundamental sensibilizarmos educadores, famílias e professores para empregarem estratégias mais claras de como podem reagir a isto, limitando o acesso a redes sociais. Se houvesse coragem política para regular e proibir o uso de telemóveis nas escolas até aos 16 anos, ou seja, final do 9.º ano, teríamos todos a ganhar com isso. Se para o álcool e o tabaco já há regulação, também devia haver para as redes sociais. Certamente que as relações sociais e a própria motricidade dos mais jovens sairia beneficiada.
A Cara da Notícia
Sociologia e Geografia Humana
Ana Matos Fernandes ou «Capicua», o seu nome artístico, identifica-se como feminista, ecologista e de esquerda. Socióloga de formação (licenciatura no ISCTE) e com doutoramento em Geografia Humana, em Barcelona, nasceu na cidade do Porto, em 1982. Rapper e escritora, venceu o prémio José Afonso em 2021 que distinguiu o seu álbum «Madrepérola». Nesse mesmo ano foi considerada a melhor artista feminina nos Prémios Play. A 20 de março de 2025 lançou o seu quarto LP, «Um Gelado Antes do Fim do Mundo», coincidindo com um concerto no Teatro Tivoli, em Lisboa. Tem somado várias experiências de escrita para teatro (de dramaturgia a bandas sonoras) e conta já com muitos anos de atividade como cronista, na revista “Visão” (2015-2021) e atualmente no “Jornal de Notícias”.