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Diretor Fundador: João Ruivo Diretor: João Carrega Ano: XXVII

Pedro Coelho, presidente do 5.º Congresso dos Jornalistas 'É preciso reconstruir o edifício do jornalismo'

26-02-2024

O jornalismo «bateu no fundo» e o Congresso de Lisboa foi um «toque a reunir». O presidente da comissão organizadora do evento, Pedro Coelho defende o financiamento público do setor e alerta que valores como a credibilidade e a confiança dos profissionais estão a ser colocados em causa «em nome da loucura das audiências»

Presidiu ao 5.º Congresso dos Jornalistas que durante 4 dias de janeiro juntou 800 profissionais no Cinema São Jorge, em Lisboa. Disse que este acontecimento não seria a salvação da profissão, mas estava confiante que haveria um antes e um depois. O que é que vai ter de mudar?

Depois dos temas que foram discutidos no Congresso, a conclusão é que as coisas não vão poder ficar iguais. Batemos no fundo e a situação na Global Media limitou-se a dar uma expressividade plena à crise. O 5.º Congresso foi um toque a reunir. Dois meses antes não tinha praticamente inscrições, em dezembro poucas inscrições tínhamos e a verdade é que o estado do jornalismo levou a que os profissionais se mobilizassem e estivessem presentes, em massa, em busca de soluções. E, no fim de contas, chegámos à conclusão de que estamos sintonizados. No essencial, a classe mostrou uma grande unidade.

O financiamento do jornalismo é o busílis da questão?
Não é dele que depende, exclusiva e fundamentalmente, o futuro do jornalismo. O quadro de valores e a sua preservação é claramente o grande desafio. O problema é que como não temos um modelo de financiamento sólido para aguentar o jornalismo, acabamos por comprometer o quadro de valores. Foi este o ponto essencial que fez despertar o Congresso. Tem de haver um financiamento público do jornalismo – esse caminho é inevitável – sem, contudo, que esse financiamento implique contrapartidas. Defendo o financiamento do jornalismo e dos jornalistas, neste último caso não com salários, mas com candidaturas a bolsas a projetos distintivos, por exemplo.

O ex-ministro da Economia Manuel Caldeira Cabral defendeu, em artigo no «Público», a 19 de janeiro, o financiamento dos “media” pela consignação do IRS, tal como hoje o cidadão comum faz com as entidades do Terceiro Setor. Seria um mecanismo de apoio que evitaria o perigo da governamentalização?

É um caminho. No Congresso surgiu também uma proposta no sentido de oferecer um “voucher” ao leitor para ele adquirir uma assinatura num órgão de comunicação social jornalístico. É importante que seguindo este rumo serem os jornalistas a arranjarem soluções de financiamento e não as empresas de comunicação social pois, como é sabido, algumas têm objetivos vão muito para além do jornalismo. Este setor está longe de ser rentável – ou seja, quem investe, nesta fase e pela primeira vez, tem de o fazer com outros interesses – e por isso, quando um grupo de comunicação social adquire um ou mais títulos é importante verificar e esclarecer quem são as pessoas que estão à frente.

Os jornalistas não são notícia, costuma-se dizer, mas nos últimos meses têm sido. E pelos piores motivos. Esta profissão vive em estado de emergência e a braços com problemas exógenos, mas também existem questões internas para resolver. Quais são as responsabilidades próprias a apontar?

Claro que sim. Nós somos diretamente responsáveis pelo estado a que isto chegou. Há um deslaçamento que é real, deixámos de agir enquanto classe – e não me refiro ao sentido corporativo. Não podemos ser cúmplices desta loucura que o mercado nos impõe e fazer coisas que até podem dar jeito ao patrão, mas são prejudiciais à profissão. Nem podemos no quotidiano profissional estar a torpedear o quadro de valores do jornalismo. As regras do mercado são incompatíveis com o jornalismo. Essa responsabilidade é nossa.

Em 2017, aquando do 4.º Congresso, havia 5746 jornalistas, em 2024 temos 5310. Ou seja, 8 por cento de quebra. Este êxodo acelerado significa que há profissionais que, pura e simplesmente, desistem do ofício?

Essas desistências acontecem, principalmente, em profissionais entre 5 a 10 anos de atividade. Eles não deixaram de gostar do que fazem, mas após muita dedicação e entrega a uma profissão tão exigente, o salário auferido não é compatível com ter uma vida. Não podemos aceitar que um jornalista com uma década de carreira ganhe o mesmo que quando entrou, sendo que esse valor está abaixo dos mil euros líquidos. Sendo que 90 por cento ou mais têm licenciatura, alguns com mestrado, e outros com doutoramento. Não faz sentido ter salários tão baixos e a perspetiva de subir na carreira seja inexistente. Mas seguimos esta carreira porque gostamos muito do que fazemos, mesmo com muito sacrifício pessoal. É a tal maldita paixão que eu falei na intervenção de abertura do Congresso.

Foi uma frase muito ouvida no Congresso: «O melhor ofício do mundo, mas o pior emprego do mundo». É a precariedade que acaba por matar a paixão?

A paixão até se pode manter, mas com esse grau de desconforto é difícil continuar por muito mais tempo. Depois acena-se com um emprego numa comunicação estratégica de uma empresa, a ganhar muito mais, com horários fixos e com fins de semana e torna-se difícil hesitar na resposta.

Três moções apresentadas ao Congresso (que depois se fundiram numa só) apelavam à realização de uma paralisação geral. No final, os jornalistas aprovaram a greve geral por unanimidade, a primeira desde 1982. O que é que espera que saia desta tomada de posição?

Como presidente do 5.º Congresso faço parte do grupo de trabalho que está a planificar a greve, visto que esta decisão é uma emanação que saiu do conclave. A data da greve será anunciada muito em breve e depois haverá tempo para o período de mobilização das redações para a paralisação (NDR: dia 14 de março foi a data entretanto marcada). Devo confessar que não estou absolutamente otimista relativamente ao sucesso da greve, mas creio que ela se tornou uma inevitabilidade. É mais um alerta que os jornalistas estão a lançar à sociedade.

Apesar do eco que a questão da Global Media teve na sociedade, pouco ou nada se tem falado deste tema durante os debates eleitorais televisivos. Está surpreendido?

Infelizmente, dos debates eleitorais ficam excluídos outros temas igualmente relevantes. Sobre este em particular a questão essencial é que nunca fez parte, no passado, de qualquer programa eleitoral dos partidos. Agora já começa a fazer. Por exemplo, pode-se concordar mais ou menos, mas o programa do CHEGA apresenta um conjunto de ações dedicadas ao jornalismo. O 5.º Congresso teve ainda o condão de comprometer os políticos a mobilizarem-se para esta causa. Os políticos fogem um pouco do tema e também percebem que a sociedade civil não está sintonizada com o jornalismo. Por culpa própria e também por culpa da ação política. Os jornalistas precisam de estar mais próximos da sociedade. Estou confiante que a greve será uma forma de aproximação. Mais um motivo para que a greve corra bem.

Muitos portugueses têm a rotina de se informarem nas redes sociais e é uma minoria a que compra jornais ou tem uma assinatura digital de um órgão de comunicação social. Como inverter esta tendência para a desvalorização dos conteúdos jornalísticos?

Voltamos às responsabilidades próprias dos profissionais: andamos a publicar conteúdos que replicam o que aparece nas redes sociais. E não são jornalismo, são comunicações, por assim dizer, pelo facto de não terem verificação ou escrutínio jornalístico. E nós andamos a reboque. O jornalismo só se torna distintivo se conseguirmos cumprir o quadro de valores da profissão. Esse é o caminho que tem de ser seguido. Só se conseguirá participar na reconstrução do jornalismo tornando-o distintivo de todas as outras formas de comunicação.

A presidente do Clube dos Jornalistas, Maria Flor Pedroso, afirmou na sua intervenção que «a opinião é outro dos elefantes na sala quando falamos de jornalismo. Tudo está contaminado por opinião». Subscreve?

Concordo com isso. A palavra é barata. Esse modelo dos painéis de opinião foi inventado pela CNN, no final dos anos 80, início dos anos 90, e foi replicado noutros canais do mesmo género. Então se for uma palavra entre opostos, é duplamente barata e dá audiências. E o que estamos a assistir nos canais de informação contínua é extraordinário: o debate após o debate tem mais tempo do que o debate principal. É uma forma de prolongamento do próprio debate. E o maior problema é que alguns desses debates são protagonizados por jornalistas com carteira profissional e que na minha ótica não têm competência para fazer esse tipo de comentário. Um jornalista tem direito a ter opinião, mas ao fazer comentários a quente e sem serem solidamente fundamentados, expõe-se a um grau de fragilidade que é excessivo. É mais uma brecha, em nome da loucura das audiências.

O auge da crise do setor acontecer quando se cumprem 50 anos do 25 de abril é ao mesmo tempo simbólico e angustiante?

Nos 50 anos do 25 de abril precisamos de reafirmar o jornalismo. Temos de deixar de fazer os disparates que andamos a fazer, desde logo a mistura entre entretenimento e informação e, volto a sublinhar, esta loucura pelas audiências, sobretudo nos canais de informação, com a escolha do político com o melhor desempenho, o melhor debate, quem proferiu a melhor frase, etc. É uma disputa sem controle. Isto é o avesso do que o jornalismo é. Também por isto, o Congresso obrigou-nos a olhar mais para dentro de nós próprios e identificarmos, sem rodeios, o que andamos a fazer mal.

A credibilidade e confiança, dois dos maiores penhores da profissão, estão em crise. É preciso resgatar (e rapidamente) esses valores?

São os pilares em que assenta o quadro de valores do profissional. A credibilidade de um jornalista demora uma carreira inteira a ser construída e é o património mais relevante para um profissional com voz, autonomia, e no fundo, que faça a diferença. O problema é quando o profissional se enleia num produto, que não sendo jornalístico, acaba por lhe manchar a credibilidade.  Ou seja, o que demora uma vida a construir, pode ser destruído num ápice. Para que isto não aconteça é fundamental não vacilar.

O Plano Nacional de Literacia Mediática foi aprovado pelo Conselho de Ministros em outubro do ano passado com o «objetivo promover o combate à desinformação e à divulgação de conteúdos falsos», dirigindo-se a crianças e jovens em idade escolar.  Era fundamental que o próximo governo desse seguimento a este plano?

É algo essencial nos dias de hoje. É fundamental que o governo que saia das eleições não desista do tema e torne a literacia mediática transversal ao ensino obrigatório. Uma das resoluções do 4.º Congresso, em 2017, foi esse compromisso com a literacia, tendo sido criada uma associação para a literacia mediática e o jornalismo. E a literacia começou a despontar nas escolas através de jornalistas, de norte a sul do país, que participaram numa ação de formação para poderem ter competências para discutir com os professores do ensino básico e secundário formas de levar a literacia às escolas. Portugal é, porventura, dos poucos países do mundo onde este tipo de literacia tem estado ausente dos currículos escolares. Por exemplo, nos Estados Unidos, é uma temática que integra os currículos escolares desde o básico. É fulcral ensinar a ver, ensinar a ler, no sentido da descodificação do mundo, para evitar cair nas armadilhas do conhecimento. É algo essencial nos dias de hoje. Para além disso esta disciplina deve constar de todos os cursos e planos de formação de jornalismo. Os próprios jornalistas são agentes de literacia mediática, mas para que tal aconteça têm de estar sensibilizados e vocacionados para o tema.

Como professor, pensa que se deve repensar o modelo de ensino e a forma de acesso à profissão?

Estou muito envolvido na reforma curricular do curso na universidade onde dou aulas (FCSH-UNL) – que foi implementada este ano – e a esta mudança presidiu a preocupação de aproximar a academia do jornalismo. Fiz uma tese de doutoramento sobre ensino e formação académica em jornalismo e é uma das áreas que mais atenção me desperta. Não se pode separar as duas realidades. Pelo contrário.  A reformulação dos planos curriculares de jornalismo parece-me urgente quando pensamos em reconstruir o edifício do jornalismo. uma coisa não funciona sem a outra. No Congresso de 2017 conseguimos instalar uma redação multiplataforma a fazer a cobertura do evento e em 2024 repetimos a experiência, novamente com alunos e professores de escolas de todo o país. Conseguimos criar um espírito de comunidade entre a academia e o jornalismo.  

Quando fez a sua tese de doutoramento em 2014 existiam 32 cursos de comunicação social ou jornalismo no país. Consegue precisar quantos existem atualmente? O número de licenciados que saem todos os anos das faculdades é suficiente ou é excessivo?

São 27 cursos. Quanto à segunda questão, gostaria de salientar a capilaridade de cursos nesta área, que para além das grandes cidades de Lisboa, Porto e Coimbra, abrange outras universidades e politécnicos, desde a UTAD, em Trás-os-Montes, até à Universidade do Algarve, praticamente ao longo de todo o eixo interior do país. Por outro lado, temos de reconhecer que o mercado da comunicação social, tanto nacional como regional, não é pujante, longe disso, é frágil. Quando a crise é grande a nível nacional ela é muito mais expressiva nos territórios de proximidade. Ainda assim seria interessante, aproveitando esta capilaridade, apostar no chamado jornalismo de proximidade que se pratica fora dos grandes centros.

Do contacto e diálogo regular que mantém com os seus alunos, sente que esta nova geração ainda conserva a ideia romântica associada ao jornalismo ou esse sentimento, devido ao contexto, tem vindo a diluir-se?

Não se perdeu o desejo pela profissão, mas os alunos, como pessoas informadas que são, sabem que o estado do jornalismo não é bom. A incerteza face à colocação no mercado e também os baixos ordenados levam a que muitos optem por outros caminhos na formação académica. Na verdade, não se consegue cativar o suficiente porque há pouco para oferecer. Mas temos de fazer alguma coisa e rapidamente, caso contrário continuaremos a perder bons estudantes de jornalismo e futuros bons profissionais, como acontece na FCSH-UNL, que é a principal referência das faculdades de comunicação e jornalismo em Portugal. Comecei a dar aulas em 2006 e na altura a vertente jornalismo era escolhida por cerca de 70 por cento dos alunos. Com o avançar dos anos, outras variantes foram ganhando terreno e nos últimos 5/6 anos, a comunicação estratégica já se situa muitos furos acima do jornalismo nas vertentes de formação preferidas pelos alunos.

 

A CARA DA NOTÍCIA

Jornalista de investigação premiado

Pedro Coelho nasceu em 1966 em Montemor-o-Novo. Considera-se um «professor híbrido», por ser ao mesmo tempo grande repórter na SIC e docente na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde leciona e produz investigação científica no domínio das ciências da comunicação. Doutorou-se, em 2014, na FCSH, com uma tese subordinada ao tema: «A formação académica para o jornalismo do século XXI: sobre questões de prática e técnica Jornalismo e mercado - os novos desafios colocados à formação». Pelo trabalho desenvolvido como jornalista de investigação na SIC, estação onde está desde a fundação, foi distinguido com diversos prémios, entre os quais os «Gazeta», em duas ocasiões, e o prémio Mário Mesquita, atribuído pela Sociedade Portuguesa de Autores. A banca e os direitos humanos foram alguns dos temas que mereceram estas distinções. Presidiu à comissão organizadora do 5.º Congresso dos Jornalistas que se realizou em janeiro último, em Lisboa.

Nuno Dias da Silva
Pedro Esteves e Reinaldo Rodrigues
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