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Carlos da Câmara, climatologista Um 'sociólogo do Tempo' de olho nos fenómenos extremos

04-08-2023

Não prevê se, por estes dias, faz chuva ou sol, mas estuda os padrões e as estruturas que conduziram ao estado do Tempo em determinado período ou região. Carlos da Câmara defende que a ação do Homem está cada vez mais presente nas alterações climáticas. O professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa alerta ainda que o sul de Portugal evoluirá, rapidamente, para um clima próprio do norte de África.

Para começar, gostaria que me definisse o que é que faz um climatologista e o que é que o aproxima e afasta de um meteorologista e da meteorologia?

É uma excelente e importante questão para começarmos a conversa. Nas imagens de satélite onde é possível observar a Terra vista do Espaço constatamos que há um conjunto de nuvens que se movem, de forma mais ou menos errática. Isto é a meteorologia. O professor José Pinto Peixoto, o maior climatologista do século passado, obrigava-nos a escrever nas aulas o seguinte: «As nuvens são a caligrafia do céu sem erros de ortografia». Isto quer dizer que se olharmos para as nuvens temos uma ideia quer do vento, quer dos movimentos da atmosfera, etc. Podemos comparar, se quiser, com as imagens do transito caótico de uma grande metrópole mundial. Agora se eu começar a olhar, deixando correr o tempo, começo a perceber que existe uma certa ordem associada e que explica e contextualiza esse trânsito caótico. O climatologista preocupa-se em entender a ordem que está por trás da aparente variedade de tipos de tempo, seja a nível global, ou de padrões e características de circulação atmosférica em determinada região. Igualmente importante é perceber como é que lentamente essa organização varia. Ou seja, aquilo que denominamos como alteração climática. Voltando, uma vez mais, a recorrer à imagem do trânsito, pretende-se aferir se a estrutura dessa circulação rodoviária sofreu alterações. Por isso, costumo sempre dizer que sou um «sociólogo do Tempo» que se preocupa com os extremos. Em resumo, interessa-me pouco as condições meteorológicas do dia de hoje, mas muito mais a estrutura que conduziu ao dia de hoje. A base de estudo de um climatologista são coleções de estados do Tempo ao longo de um determinado período e em determinada região.

É recorrente ouvir-se o cidadão comum dizer que os especialistas nestas áreas antecipam alterações ao clima em várias décadas, quando muitas vezes as previsões a 10 dias erram. O que lhe apraz dizer?

São duas visões completamente distintas. O meteorologista quer saber que tempo vai fazer amanhã ou nos dias seguintes. E a qualidade da previsão perde-se à medida que avançamos no calendário. Infelizmente, as pessoas só se lembram do meteorologista se uma tempestade lhes arruinar uma colheita ou se estragar uma festa ao ar livre, canalizando toda a sua ira para estes profissionais por terem errado na previsão.  O climatologista quer dar resposta à seguinte pergunta: a estrutura é igual ou vai manter-se?  Não sei se no dia do seu aniversario, daqui a 30 anos, se vai chover ou fazer sol, mas hoje, no dia em que conversamos, consigo dizer que há uma maior probabilidade de não chover do que chover. Isto é o climatologista.

Mas, afinal, o que é que ambas as atividades têm em comum?

Para que as pessoas entendam melhor, é como se fosse um psicólogo e um sociólogo. O psicólogo quer saber qual é o seu estado de espírito. Verifica que há dias em que está mais triste, o que não quer dizer que esteja depressivo. Mas se a situação se degradar e evoluir para uma depressão, o caso já muda de figura. Isto corresponde a uma transformação na organização dos seus estados de espírito. Isto serve para alguma coisa? Serve. As companhias de seguros não querem saber se eu vou morrer amanhã numa viagem de automóvel. O interesse delas é cobrar prémios a uma grande coletividade de condutores e sabem que estatisticamente uma parte dos condutores terá, previsivelmente, mais sinistros. O climatologista antecipa tendências e padrões de secas e cheias, o que permitirá calcular e mitigar riscos, que correspondem, direta ou indiretamente, a avultados prejuízos económicos.

Com os dados que possui, a era dos extremos, climatologicamente falando, é uma realidade sem retorno?

Não há qualquer dúvida que estamos num processo de mudança da organização dos padrões de clima devido à ação humana. Não quero castrar a opinião de quem entenda o contrário, mas isto não é discutível. É ciência. Se não se incluir a ação humana através da emissão de gases dos efeitos de estufa nos modelos, as características do clima no globo não reproduzem a realidade. Há sempre os que argumentam que o clima tem variado ao longo de milhões de anos. É verdade. A questão é que nunca na História da Terra tivemos uma alteração a um ritmo tão acelerado e isso deve-se à ação do Homem. Não tenho nada contra determinadas profissões, mas ouvimos, aqui e ali, advogados, economistas e engenheiros mecânicos, contestarem esta realidade, quando são atividades habituadas a um tipo de ciência em domínios distintos, que nada tem que ver com o sistema climático e as suas múltiplas interações.

Em que aspetos é que ainda subsistem dúvidas e que carecem de investigação suplementar?
Por exemplo, há incertezas em saber onde é que as alterações climáticas vão ser mais graves, qual a intensidade e frequência dos fenómenos extremos, bem como a área espacial em que vão incidir. E, sobretudo, e isto talvez seja o decisivo, quanto tempo vai demorar a atmosfera a reagir a uma redução da ação do Homem. Concordo com a opinião de um grupo de especialistas do exército norte-americano que defenderam que as alterações climáticas são a maior ameaça à estabilidade do ocidente. Este fenómeno vai gerar um défice hídrico em imensas zonas do globo que empurrará populações inteiras para outros territórios, com impactos enormes na nossa maneira de viver.

As estações do ano estão cada vez mais descaracterizadas. O que nos reservam os próximos anos em termos de padrões de clima são invernos húmidos, mas não necessariamente chuvosos, e verões tórridos e secos?

Isso vai depender de região para região. Uma garantia é que a intensificação do ciclo da água é cada vez maior. Os extremos vão ser mais severos.  Quem é que diria, há uns anos, que fenómenos raros como furacões se transformariam em ciclones tropicais e acabariam por “visitar” Portugal continental? E a grande fonte de energia que alimenta esses autênticos «monstros» tem a ver com a água do mar cada vez mais quente. Nas regiões mediterrânicas o que se perspetiva é que teremos períodos de seca e episódios de chuva mais curtos e mais intensos. As alterações climáticas vão tornar mais frequentes estes tipos de fenómenos. O problema da precipitação em Portugal não reside no facto de ela ser muito menor, mas ser muito pior distribuída ao longo dos 12 meses, concentrando-se em determinadas regiões e em curtos períodos de tempo. A agricultura e a erosão são as principais sacrificadas. Eu insisto muito na questão dos extremos compostos. Quando um avião se despenha o motivo para a queda não é apenas um. Com o clima acontece o mesmo. Como os extremos estão a tornar-se mais comuns, a conjugação de dois ou mais fenómenos raros começa a ser mais frequente. Exemplifico: depois de uma longa seca, chego ao verão com o solo e a vegetação stressada e se, entretanto, houver uma onda de calor ela vai gerar efeitos muito mais severos. O impacto será muitíssimo maior. Pelo contrário, se eu tiver água no solo e nas plantas, ambos aguentam a energia mesmo que a temperatura dispare e ainda arrefecem devido à evaporação.

O «Expresso» noticiou, recentemente, que o ano passado o calor extremo matou 2401 pessoas e que atravessámos seis ondas de calor. As previsões apontam que podemos viver, num futuro não muito longínquo, três meses por ano acima dos 35 graus. Portugal, nomeadamente o Alentejo e o Algarve, vai evoluir rapidamente para um clima próprio do norte de África?
Sim. Qualquer agrónomo, silvicultor ou climatologista vai confirmar-lhe que o índice de aridez, especialmente a sul do Tejo, no Alentejo e Algarve, tem vindo a aumentar de forma dramática. Mas isso não é de espantar porque as regiões mediterrânicas são regiões-fronteira entre as regiões desérticas, áridas e as regiões temperadas. São uma espécie de tampão. Basta haver uma pequena deslocação, em média, dessa zona de transição para que um território que habitualmente é considerado mediterrânico passe a ser árido. Não é por acaso que os climatologistas afirmam que as regiões mediterrânicas são um dos “hot spots” das alterações climáticas.  E “hot spot” significa que se trata de uma zona do globo especialmente sensível às alterações climáticas. Os países sob a influência de climas mediterrânicos estão mais sujeitos a fenómenos extremos. Como notará, os grandes incêndios que estão a ocorrer, quase todos, nas regiões da Europa mediterrânica. Fora do “velho” continente, onde há mais incêndios é, precisamente, na Califórnia e na Austrália, onde o clima é mediterrânico.  O caso dos incêndios no Canadá e na Sibéria é diferente porque significa que o fogo já está a chegar a regiões muito próximas do Ártico. Noutro hemisfério, a África do Sul está a debater-se com muitos problemas, nomeadamente com uma situação de seca. Porquê? É um clima mediterrânico.  Tenho muito interesse em ver e também em mostrar aos meus alunos os incêndios no globo detetados por imagens de satélite e o que se constata é que os fogos também estão sujeitos a uma lógica e a uma ordem própria. Ou seja, os incêndios são também o espelho das alterações climáticas.

Sobre as secas prolongadas, referiu que é um problema que requer «paciência e imaginação». Quer concretizar?
Vivemos numa sociedade em que se exigem resultados para amanhã. Da mesma forma que um político pretende resultados para a legislatura. A mentalidade latina, em particular a portuguesa, não consegue esperar. Por nada. Nem no clima, nem na educação, etc. O clima é um problema a longo prazo. E não se vai resolver nem em 4, nem em 8, nem em 10 anos, nem sequer em 50 anos. Mas é preciso ter paciência. Quase que é preciso recuar ao tempo da Idade Média, em que as catedrais começavam a ser construídas e sabia-se, de antemão, que essa obra só ficaria construída 200 ou 300 anos depois.  Mesmo assim, as pessoas não desesperavam e abraçavam essa causa.

Mas ser paciente não pode significar ficar de braços cruzados. Como se deve agir, no imediato?

As ações de mitigação dos impactos das alterações climáticas implicam reformas estruturais, que não só custam dinheiro, como implicam sacrifícios, inclusive para gerações que não vão colher os frutos desse sacrifício. Temos de olhar para a natureza de um ponto de vista da responsabilização e, como sou grande admirador de S. Francisco de Assis, de um ponto de vista franciscano, para que interiorizemos que somos parte integrante da natureza e colocando de parte a tal relação de supremacia e domínio que se vem acentuando.

Ainda hoje, no dia em que fazemos esta entrevista, o Primeiro-Ministro falou que é necessária uma reforma estrutural da floresta. Fez parte de vários grupos de trabalho sobre as áreas com maior risco de incêndio no país. Quanto tempo leva a ordenar uma paisagem historicamente desordenada e, já agora, dizimada pelos incêndios das últimas décadas?

Façamos uma analogia com a lareira de casa. O que precisa para ter um bom fogo? Três coisas: lenha com boa qualidade, uma chaminé com boa tiragem e chegar o fosforo a uma acendalha. Se algum destes aspetos falha, não há fogo para ninguém. Vamos transpor isto para a paisagem. Quando em falo em lenha, seria o estado da vegetação e normalmente falamos de biomassa stressada, porque os eucaliptos das empresas de celulose não ardem, simplesmente porque estão cuidados e ordenados. O motivo é porque são vistos como valor económico.

Bem, mas voltando ao exemplo da lareira…

Na lareira a boa tiragem é o equivalente à meteorologia. Nos dias em que se registam mais de 30 graus de temperatura, menos de 30 por cento de humidade e o vento sopra a uma velocidade superior a 30 quilómetros por hora, está o caldo entornado. Finalmente, o lado da acendalha tem o paralelo com as condições para o início da ignição: causas naturais, negligência ou o «incendiarismo», vulgo fogo posto. Basta ver e comparar as imagens de satélite dos anos 80/90 com a atualidade e verifica-se a diferença é do dia para a noite: a mancha florestal aumentou, os terrenos abandonados aumentaram, os terrenos agrícolas que serviam de tampão praticamente desapareceram. Em resumo, a paisagem mudou. E a própria população, que já não vive da exploração da terra, tem uma dinâmica diferente e o interior está muito envelhecido e desertificado. Uma reforma estrutural só se faz mudando a estrutura da paisagem para que os impactos extremos sejam mitigados. E isso implica tempo, paciência, persistência e imaginação. E acima de tudo proteger aquilo a que damos valor. E atualmente não damos valor à nossa paisagem. No dia em que as pessoas valorizarem a paisagem, garanto-lhe que vão protegê-la.

Que consequências devem recair sobre os responsáveis por comportamentos negligentes e criminosos no património natural?
Como professor que sou acredito que o Homem é educável, e esse é o caminho para reduzir ou evitar a todo o custo as ignições. Será a partir da prevenção e da formação, desde tenra idade, nos bancos da escola, que as pessoas devem aprender como atuar perante a natureza, tendo em conta que os extremos vão ser cada vez mais severos e intensos. E depois há outra forma, a repressiva, através da coima e da prisão. Mas, necessariamente, defendo uma visão profilática.

Durante o período de incêndios ouvimos muito dizer que «todos somos agentes de proteção civil». De que forma o ensino e a educação podem contribuir para essa cultura de responsabilidade cívica?

Um engenheiro florestal senegalês, de seu nome, Baba Dioum, disse em 1968: «No fim conservaremos apenas o que amamos; amaremos apenas o que compreendemos; e compreenderemos apenas o que nos ensinam». No fundo, o problema a montante está na educação. A nossa relação com o clima é muito uma questão ética e estética. O valor da paisagem deve começar a ser ensinado nas escolas. É preciso interiorizar o inestimável valor de certas coisas. Só assim se conseguirá modificar comportamentos e, deste modo, trilhar caminhos rumo à solução. Estou em crer que o esforço valerá a pena.

Para finalizar, uma pergunta sobre a forma como a ciência tem resistido aos boatos e a algumas campanhas, especialmente disseminadas nas redes sociais. Tem a receita para derrotar os negacionistas?

Acredito que sempre houve negacionistas e adeptos das teorias da conspiração, a diferença é que no passado não desfrutavam de tanta visibilidade por não existirem redes sociais. Mas, se me permite, deixe-me dizer o seguinte: os cientistas também estão a colher os ventos que semearam, porque dinamizaram uma crença desmesurada na ciência. Começou no século XIX com o positivismo e teve o seu auge no princípio do século XX, quando a ciência achou que podia substituir-se a tudo o resto. E deu a asneira que deu. Aconteceu uma crise científica grande, com a teoria da relatividade a destruir a mecânica de Newton. E os próprios conflitos mundiais tiveram na origem ideologias de base científica. Isto é uma questão. O segundo tema que se coloca é que o ser humano tem muita dificuldade em resolver problemas que não são lineares. E os problemas relacionados com o clima, muitas vezes, têm soluções que não são de todo aquelas que a nossa intuição apontava.  O que torna a ciência mais hermética. O cientista tem de ser humilde. Provavelmente o que estou a dizer agora, amanhã já não será exatamente assim. Como dizia o escritor Vergílio Ferreira, «uma verdade é um erro à espera de vez.» E esta frase aplica-se, na perfeição, em ciência.  A ciência não é a panaceia para tudo. Mas os seus passos e progressos são lentos e seguros. Confiemos nela.

 

A CARA DA NOTÍCIA

Deteção remota e incêndios florestais

Carlos da Câmara é professor do departamento de engenharia geográfica, geofísica e energia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. São cerca de quatro décadas a lecionar, o que o torna um dos mais experientes docentes e climatologistas portugueses. Investigador no Instituto Dom Luiz, fez o seu doutoramento na universidade norte-americana de Missouri-Columbia sobre os fenómenos de bloqueio e a dinâmica das chamadas ondas planetárias. Foi ainda vice-presidente do antigo Instituto de Meteorologia e Geofísica – atual IPMA – durante cerca de três anos. A deteção remota (monitorização da Terra a partir de satélite) e os incêndios florestais são duas das suas principais áreas de especialização. Tem sido presença assídua nas televisões para explicar a onda de calor que assola boa parte do continente europeu, em consequência de um dos meses de julho mais quentes de que há memória.

Nuno Dias da Silva
Direitos Reservados
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