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Carlos Neto, professor jubilado da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa 'O mundo mudou, mas a escola ficou no mesmo sítio'

04-08-2023

Carlos Neto afirma que o paradigma escolar não promove o tempo para a brincadeira e outras atividades informais, à margem da sala de aula. O especialista em desenvolvimento infantil critica a «visão cartesiana», em que dentro do portão da escola só entra o cérebro, enquanto o corpo fica do lado de fora. Para contrariar a «hipocondria digital» que se apoderou da vida dos jovens e do meio escolar, preconiza uma utilização mais equilibrada e regulada dos dispositivos digitais.

O regresso das crianças às ruas para brincar no espaço público tem sido uma das maiores lutas da sua carreira de docente e investigador, com cerca de cinco décadas. Fala mesmo em «analfabetismo motor». Pode desenvolver mais em profundidade esta ideia?
A minha luta permanente tem sido demonstrar que estas competências motoras não podem ser esquecidas. Qualifico a situação que vivemos como alarmante, na sequência da degradação progressiva, nas últimas décadas, das competências motoras, lúdicas e até artísticas das crianças. Registaram-se vários constrangimentos que não só afetaram a vida das famílias, da comunidade e da própria escola. Neste contexto, as crianças deixaram de desempenhar um conjunto de experiências absolutamente fundamentais no seu desenvolvimento, especialmente até à puberdade. Esta superproteção levou a mais crianças com obesidade, aumento de peso e perda de mobilidade autónoma. Padronizou-se, exageradamente, os espaços escolares e comunitários, fazendo com que as crianças deixassem de ter tempo e espaço para poderem brincar de forma livre, com reflexos no seu desenvolvimento motor, social, mental e emocional.

O que defende para inverter esta situação?

Para começar, ter políticas públicas ousadas, no sentido de reabilitar a rua enquanto local de encontro e local de jogo. A escola da rua desapareceu ou está em vias de extinção. O grande problema é que temos uma escola completamente padronizada, formatada, com espaços completamente plastificados. Atualmente, dispomos de verdadeiras obras de arquitetura escolar no sistema educativo português, desde o pré-escolar ao ensino secundário, mas a verdade é que as crianças ficam muito pior servidas. O lado do betão e do sintético fez com que o espaço para a contemplação da natureza tenha acabado e com ele brincadeiras em que existia a fuga, a perseguição ou a luta, como é o caso de subir às árvores ou brincar às escondidas. Essas experiências sensoriais fundamentais para o corpo praticamente deixaram de existir. Hoje em dia, temos crianças que estão a chegar ao fim do 1.º ciclo e que não sabem jogar, não sabem saltar, não sabem atar os sapatos. É uma tragédia. Como costumo dizer, e reitero, estamos a formar analfabetos motores. Também relacionado com esta nova realidade, está o aumento de casos de ansiedade, depressão e défice de atenção e hiperatividade.

As crianças podem brincar menos, mas não é por isso que ficam de braços cruzados…

As crianças hoje têm agendas completamente preenchidas e organizadas. Algumas passam mesmo mais de 50 horas semanais na escola, cerca de 10 horas por dia. Por seu turno, os seus pais vivem em precariedade e este contexto acaba por transformar as crianças em vítimas do tempo dos adultos. Há uma “escravidão” escolar que se implementou e que, estou em crer, ainda não há suficiente consciência do seu impacto no desenvolvimento dos mais novos. O meio escolar está dominado por uma “hiper-escolarização” que não deixa tempo livre e informal como forma de equilíbrio. As nossas gerações tiveram essa oportunidade e as crianças atuais estão quase privadas disso. O brincar é insubstituível e fundamental para o seu desenvolvimento.

A capa do seu livro, “Libertem as crianças – a urgência de brincar e ser ativo”, lançado em 2020, que se tornou uma referência no âmbito do desenvolvimento infantil, tem uma criança a subir a uma árvore, uma brincadeira que, diz, hoje é vista como algo radical. Esta nova conceção é responsabilidade da escola ou do contexto familiar?

É preciso uma abordagem multidimensional, mas a superproteção parental é um aspeto fundamental. Hoje as crianças saem de casa e da escola e são metidas no automóvel, ficando privadas de explorar a autonomia e a mobilidade do seu próprio corpo. Perante isto, ficam mais frágeis perante a relação com o imprevisto, o incerto e o risco. O espaço público foi capturado pelos automóveis, tornou-se caótico e roubou a liberdade às crianças e aos jovens. Perdeu-se a identidade e a perceção do espaço onde as crianças vivem e crescem. As crianças hoje deixaram de ter amigos, muito por culpa desta vertiginosa emergência do digital e a evolução da Inteligência Artificial ainda vai piorar o cenário. Os paradigmas das escolas, por seu turno, não mudaram. O mundo mudou, mas a escola ficou no mesmo sítio. Aliás, vou mesmo mais longe, hoje as escolas são uma prisão. Digo mesmo que há presos em cadeias que têm mais tempo de recreio do que muitos alunos. E não é exagero, é factual. Em 2015 fizemos um estudo e uma campanha que apurou que os presos têm cerca de 2 horas diárias fora da cela e as crianças têm cerca de hora e meia no espaço exterior das salas de aula.

Pelo que depreendo das suas palavras, a escola precisa de uma grande transformação?

Temos de pensar uma escola nova, no sentido de perceber que as crianças têm direito a ser crianças. Os estabelecimentos de ensino só têm o foco na escolarização centrada no aperfeiçoamento para testes, notas e avaliações, tendo em vista as médias para entrar no ensino superior. Isto é uma forma de esquecer que a escola é um espaço onde as pessoas aprendem a viver e também apreendem competências mais gerais. A escola é, historicamente, um local comprovado para a preparação de cidadãos, capacitando-os para enfrentar as mudanças que ocorrem nas sociedades. A escola ensina a saber conviver, resolver problemas, trabalhar em equipa. O que agora se chama os “soft skills”.

A pandemia agravou a situação que tem descrito?

Sem dúvida. Representou uma regressão em muitas dimensões. Há uma espécie de sofrimento existencial e uma agitação motórica que se agravou devido ao aprofundamento do sedentarismo infantil. E ninguém está preocupado com o sedentarismo infantil. Continua a imperar uma visão cartesiana na escola, em que dentro do portão só entra o cérebro e o corpo fica do lado de fora. O corpo está esquecido na escola. É um disparate completo, negligenciando-se uma dimensão holística fundamental. Isto não pode continuar. O mundo mudou, logo, a escola vai ter de mudar também. Há obstáculos e problemas para resolver, como a precariedade dos professores, e a escola está cansada e exausta. O primeiro passo seria descentralizar as políticas educativas.

A imaturidade que hoje em dia, aqui e ali, se ouve os professores universitários qualificarem muitos dos seus alunos deve-se à forma como as nossas crianças e jovens estão a desenvolver-se no espaço escolar?

Tem a ver com as oportunidades que não foram vividas desde as primeiras idades. Muitas dessas crianças foram sujeitas a uma lógica completamente formatada e institucionalizada. No fundo, viveram um regime demasiadamente aprisionado. A escola precisa, porque a sociedade assim o exige, de formar crianças e jovens que sejam exploradores, cientistas e artistas. Se não estimular as crianças a deixarem de estar sentadas e obedientes nas salas de aula, esse objetivo não será conseguido. Sou um intransigente defensor dos direitos das crianças como forma de lhes proporcionar uma infância feliz e a nossa escola não está a cumprir essa missão. Portugal até tem boas experiências do ponto de vista pedagógico, mas ainda apresentamos uma grande assimetria, em especial, comparativamente com os países do norte da Europa. Nesses países, mesmo com um clima mais agreste, os alunos andam no espaço exterior 3 a 4 horas por dia. Em Portugal cai um pingo de chuva e entram todos para dentro da escola cheios de medo. É esta superproteção que “mata” as crianças no seu desenvolvimento. Sou um acérrimo defensor da escola que promova, cada vez mais, um conhecimento vivido e experienciado e não um conhecimento que é imposto de forma tradicional.

O relatório da UNESCO – “Educação 2030” propõe um novo contrato social para a educação. Portugal deve aproveitar para apanhar essa «boleia»?

Esse estudo veicula mensagens absolutamente essenciais e que muito deviam interessar ao nosso sistema e comunidade escolar. Destacaria a promoção de uma aprendizagem ecológica, uma conceção multicultural e interdisciplinar, bem como uma cidadania e uma participação democrática. No fundo, são aspetos em que a nossa escola é ainda francamente deficitária. Principalmente na questão dos processos educativos, em que as crianças não participam, na maior parte dos casos, ativamente, limitando-se a receber passivamente o conhecimento. E também não queria deixar passar o apelo ao trabalho em conjunto que este estudo pretende dinamizar. Pais, professores e também as autarquias têm de dar as mãos e conferir um sentido novo à escola, tendo em vista os enormes desafios do presente e do futuro.

Falemos agora da questão da «sedução digital» que é um dos temas que o preocupa. É um critico da utilização desmedida de aparelhos digitais em ambiente escolar…

Há uma hipocondria digital enorme que está a travessar a nossa adolescência, agarrada e capturada pelos ecrãs. As tecnologias estão a “encharcar” completamente a nossa vida, e também o mundo escolar. É inevitável que os dispositivos digitais vieram para ficar, preocupante é que os aspetos negativos rivalizam com os positivos.

Que cuidados se deve ter na utilização destes dispositivos digitais em ambiente escolar?

Os dispositivos digitais devem ser utilizados, do ponto de vista educativo, sempre que necessário.  Já fora do ponto de vista educativo, não defendo regras rígidas ou impostas, mas sim uma negociação entre pais, filhos e os professores para uma utilização equilibrada destes dispositivos. Veja que hoje os espaços exteriores das nossas escolas, ou o recreio, se preferir, são áreas silenciosas. As escolas estão silenciosas. Ando por todo o país em palestras e verifico que, especialmente a partir do 2.º ciclo, quando os jovens já têm acesso a telemóveis, reina o silêncio, ninguém conversa com ninguém e, mesmo durante o período de pausa, muitos ficam dentro de quatro paredes com o aparelho nas mãos.  Isto tem efeitos terríveis na adolescência, nomeadamente no desenvolvimento afetivo e emocional.

Foi recentemente lançada uma petição pública subordinada ao tema «Viver o recreio escolar sem ecrãs de “smartphones”» e que já acumula mais de 18 mil assinaturas. Valida a proposta dos subscritores que defendem que durante o tempo de permanência dos alunos nas escolas os telemóveis ou os “tablets” seriam depositados em cacifos?

Essa seria uma das soluções que foi, aliás, adotada por uma escola de Lourosa.  Mas acho que há medidas mais democráticas. É possível combinar ou negociar com os jovens as regras a adotar. Bem sei que há jovens que têm um grande sofrimento se não tiverem um acesso regular a esses dispositivos digitais, mas é preciso agir.  Mas creio que o ponto chave, neste momento, deve ser lançar a reflexão e discussão sobre o futuro tecnológico e o seu impacto no desenvolvimento humano, em especial nas crianças e jovens, repensando os direitos humanos aplicados ao uso das novas tecnologias e em particular à Inteligência Artificial, que abre um mundo desconhecido e sobre o qual ainda não sabemos quase nada. Temos, por isso, de atuar imediatamente, para encerrar a página da escola do passado, que já não serve para nada. A nova escola deve ser humanista e ecológica, mas em momento algum pode perder de vista ou não retirar os ensinamentos e mais-valias de uma revolução tecnológica que veio para ficar. Se assim for, estou certo de que conseguiremos legar e transmitir aos mais novos a capacidade criativa e a capacidade de adaptação.

Michel Desmurget, neurocientista francês, e autor do aclamado livro “A fábrica de cretinos digitais”, cujo prefácio da edição portuguesa é da sua autoria, defende que «o tempo de ecrãs nas crianças até aos seis anos devia ser nenhum, zero». Este especialista fala mesmo que estamos a viver uma «orgia digital». É exequível um controlo parental mais apertado no uso de dispositivos digitais?

As crianças estão a ser bombardeadas do ponto de vista sensorial e percetivo ao nível do seu cérebro e do seu corpo com estes ecrãs. A vida das famílias tornou-se um inferno e o que temos são pais distraídos digitalmente com o tempo de uso que os seus filhos fazem dos dispositivos digitais. Isto contribui para o sedentarismo infantil, que já aqui falámos, e com o qual o nosso Serviço Nacional de Saúde (SNS) não parece estar preocupado, mas a curto, médio ou longo prazo vai ver as consequências com problemas de saúde graves. A maior pandemia deste século é o número de horas que estamos sentados. Estudos realizados apontam que do ponto de vista de maturidade cognitiva, social, emocional e motora não se devia disponibilizar ecrãs a crianças até aos 2/3 anos. Entre os 3 e os 5 anos, a idade do pré-escolar, os pais já podem ver com os mais novos filmes educativos, com a devida e atenta supervisão. No 1.º ciclo já há algumas crianças com telemóveis, especialmente pelo facto de os pais se sentirem ansiosos para terem a comunicação rápida com os filhos. Entre os 5 e os 10 anos, recomendaria 2 a 3 horas de exposição a ecrãs. Mas a partir do 2.º ciclo a situação complica-se muito e o controlo parental torna-se cada vez mais difícil. Contudo, sempre que possível, o ideal seria que o tempo de exposição a ecrãs não excedesse as 4/5 horas. Para além disso, estudos recentes demonstram que os dispositivos lúdicos (ou jogos “online”) estão a ganhar a atenção de milhares de jovens. Esta excessiva exposição é particularmente problemática e segundo dados recentes, os jovens entre os 12 e os 18 anos já passavam cerca de 7 horas por dia a jogar. Em alguns casos, o tempo em frente aos ecrãs já supera o tempo de sono. É preocupante e cria uma dessincronia completa ao nível do nosso organismo.

O jovem que planeou um ataque, não concretizado, à Faculdade de Ciências de Lisboa era viciado em jogos “online” violentos. Admite que situações como esta podem, mais tarde ou mais cedo, reeditar-se?

Claro, é um exemplo do que pode vir a acontecer de forma mais frequente. Estas novas tecnologias apoderam-se das fragilidades em termos de desenvolvimento das crianças e dos jovens. É um fenómeno que está a acontecer um pouco por todo o mundo. Estes dispositivos cada vez mais sofisticados são as novas armas do futuro. Para além do mais, a proliferação de casos de “cyberbullying”, também no nosso país, é extremamente inquietante, até porque são dinâmicas sobre as quais nós não temos capacidade de controlar.

 

A CARA DA NOTÍCIA

Quando brincar é um assunto muito sério

Carlos Neto, nascido em Leiria, há 71 anos, é um dos maiores especialistas mundiais na área da brincadeira e do jogo e da sua importância para as crianças. Para o professor catedrático jubilado da Faculdade de Motricidade Humana (FMH) da Universidade de Lisboa, brincar é um assunto muito sério. Por essa razão, o trabalho de investigação académica que tem vindo a desenvolver há quase cinco décadas centra-se sobretudo no papel do brincar e do jogo no desenvolvimento da criança, na independência de mobilidade em crianças e jovens e no “bullying” nas escolas. É um dos membros fundadores da cooperativa de ensino «A Torre», onde trabalha desde 1972 com crianças dos 3 aos 10 anos, no âmbito do jogo e motricidade infantil. Esse trabalho engloba a formação teórica e prática dos alunos da FMH, tanto das diversas licenciaturas como de mestrados e doutoramentos. Em paralelo, Carlos Neto orienta diversos projetos de investigação e intervenção comunitária e colabora com um leque alargado de entidades e autarquias.

Nuno Dias da Silva
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