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Teresa de almeida e silva, professora catedrática e vice-presidente do instituto do Oriente ‘As guerras do futuro serão cada vez mais tecnológicas’

11-12-2023

Com a crescente sofisticação tecnológica as guerras serão mais cirúrgicas, farão menos vítimas e serão necessárias menos tropas no terreno. A opinião é defendida pela professora do ISCSP, Teresa de Almeida e Silva que, sobre o conflito no Médio Oriente, admite que prolongará no tempo, de geração em geração, o ódio e o desejo de vingança que tem sido alimentado por israelitas e palestinianos.

Os ataques de 7 de outubro, perpetrados pelo Hamas, tiveram, como vários analistas disseram, o simbolismo de um «11 de setembro» para os israelitas?
O 7 de outubro ficará com essa conotação associada, uma vez que foi, talvez desde a guerra da independência, em 1948, 1967 e 1973, o maior ataque sofrido pelo Estado de Israel. Com uma diferença substancial, que desta vez não é um Estado a atacar outro Estado, mas sim uma organização terrorista a visar o Estado israelita. Israel foi apanhado desprevenido, especialmente por não ter antecipado que o Hamas teria a capacidade de promover um ataque daquela envergadura.

Mas o Hamas tinha realmente capacidade, militar, operacional e estratégica para iniciar este conflito, ou existiu a intervenção, direta, nos bastidores, do Irão e indireta da Rússia, que ansiava relegar as atenções do conflito com a Ucrânia da agenda mediática?
Sim, desse ponto de vista a guerra da Ucrânia ficou para um segundo plano desde o início de outubro, apesar de no terreno não serem claros os avanços das tropas russas. Por outro lado, foi, de facto, surpreendente a capacidade militar e operacional demonstrada pelo Hamas, desde o dia 7 de outubro. Existem, também, suspeitas que o Irão tem vindo, nos últimos anos, a apoiar o Hamas como forma, por via indireta, de confrontar e colocar o Estado de Israel à prova. Isto para além de serem conhecidas as ligações de Teerão com o Hezbollah e a Jihad Islâmica.

É correto dizer-se que, de alguma forma, o conflito no Médio Oriente já está regionalizado ou internacionalizado?
O conflito do Médio Oriente já não está circunscrito aos territórios israelitas e palestinianos. Já se internacionalizou, expandindo-se, nomeadamente, ao Líbano e se fizermos «zoom out» naquela região veremos que os rebeldes Houthis, no Iémen, estão também a tentar intervir no conflito, tendo sido já vários os “rockets” lançados em direção a Israel, muitos deles intercetados pelo” Iron Dome” dos israelitas ou pelos navios da marinha norte-americana que estão estacionados na região.

A questão nuclear, sempre presente quando falamos do Irão, constitui uma ameaça permanente?
O temor pelo uso de armas nucleares é algo constante. No entanto, todos os atores que possuem armas nucleares conhecem os perigos resultantes do uso deste armamento, ao não permitirem que os danos fiquem circunscritos a um espaço limitado. O eventual recurso a armas nucleares, fosse do lado palestiniano, fosse do lado de Israel, causaria terríveis danos, tanto nos territórios inimigos, como nos países ao seu redor.

É viável ou utópico pensar-se na criação de dois estados soberanos, a coexistirem lado a lado?
Esse é um plano que está em cima da mesa desde finais dos anos 40 do século passado. Neste momento, parece-me impossível ser uma realidade. Benjamim Netanyahu sempre se manifestou contrário, ao longo de toda a sua carreira política, à criação de um Estado palestiniano, enquanto do lado palestiniano Mahmoud Abbas está também bastante fragilizado, do ponto de vista interno, visto que não há eleições para a Autoridade Palestiniana desde 2006. Considerando as tremendas tensões, tanto de um lado como do outro, não vejo como criar dois estados independentes e soberanos. As cedências seriam sempre necessárias, mas ainda para mais após esta guerra aberta, quem é que estaria disposto a ceder?

A Palestina aspira a ser um Estado independente, mas as divisões dentro da própria nação árabe constituem um forte obstáculo a esse objetivo?
Sim. Quando o Hamas ganhou as eleições, em 2006, tinha escrito no seu programa eleitoral que caso fosse vencedor dividiria o poder com a Fatah, o braço armado da Autoridade Palestiniana. Mas isso não aconteceu, e em Gaza e na Cisjordânia o que existe são autogovernos. Em suma, o primeiro obstáculo à criação de um Estado palestiniano soberano reside na divisão entre os próprios palestinianos. O outro grande problema nesta eventual coexistência seria o seguinte: quem é que vai ficar com Jerusalém, a cidade que tem sido alvo de eterna disputa religiosa e territorial entre ambos os povos.

Os Estados Unidos são o eterno aliado de Israel. Neste momento, Joe Biden está a terminar o seu mandato. Um presidente recém-legitimado pelas urnas poderia ter mais possibilidades de conseguir um entendimento entre os beligerantes?
Esse entendimento já foi tentado, no passado, por vários presidentes norte-americanos. Jimmy Carter protagonizou os acordos de Camp David e Bill Clinton, ao promover os acordos de Oslo, conseguiu o período mais longo de estabilidade no Médio Oriente. O problema é sempre o mesmo: tanto na sociedade israelita, como na sociedade palestiniana existem sempre setores mais radicais que não aceitam esses acordos, rejeitando qualquer espécie de diálogo com a outra parte e protagonizando focos de desestabilização permanente.

Aliás, basta olhar para a História e ver como muitos líderes pagaram os esforços pela paz com a própria vida…
Nos acordos de Camp David existiram cedências de ambas as partes e os palestinianos estiveram representados nas negociações pelo Egipto. O presidente egípcio Anwar Al Sadat acabou por ser assassinado, pouco depois. Por seu turno, depois dos acordos de Oslo, o primeiro-ministro israelita, Yitzhak Rabin acabou por ser morto por um judeu, durante um comício em Telavive. Nestes dois casos foram os radicais de ambos os lados que rejeitaram, liminarmente, qualquer espécie de acordo, reclamando os territórios para si. Para além disso, recordar também que a carta constitutiva do Hamas, no seu artigo 11.º, diz que a Palestina é um “Waqf” – ou seja, um domínio muçulmano e que não pode ser alienado e pelo qual é necessário lutar e preservar nas mãos muçulmanas, até à morte. Perante isto, dificilmente o Hamas ou outro grupo abrirão mão do seu território.

Qualquer guerra tem danos colaterais, mas parece consensual que Israel enveredou por uma ação punitiva desproporcionada, gerando uma crise humanitária na Faixa de Gaza. O direito à autodefesa faz com que possa valer tudo na resposta militar?
Não se pode justificar tudo com a autodefesa. Isso é claro. Contudo, é preciso perceber que este conflito, neste momento, está a desenrolar-se em moldes e padrões diferentes, sendo uma das partes protagonizada por uma organização terrorista que, para começar, não reconhece o próprio Direito Internacional. Do outro lado temos um Estado soberano que foi atacado. Não estou com isto a legitimar as ações de Israel, mas este Estado tem o direito a defender-se. A forma como o fez, do ponto de vista e à luz do Direito Internacional e humanitário, é não terá sido a mais apropriada. De qualquer maneira tentou, ao máximo, limitar as vítimas civis do lado palestiniano, tendo feito, inclusive, apelos para que as pessoas abandonassem locais que estariam na iminência de ser bombardeados. O Hamas, por seu turno, tentou impedir e proibir as movimentações dessas populações, o que tornou, nalguns momentos, os civis palestinianos autênticos escudos humanos.

O Hamas troca um refém por três terroristas palestinianos detidos nas prisões israelitas. Pode afirmar-se que esta «guerra» está a ser ganha pelo Hamas?
Sem dúvida, porque volta a contar nas suas fileiras com operacionais que tinham sido presos por atentarem contra o Estado israelita. Mas isto é uma prática comum às organizações ligadas ao terrorismo de matriz islâmica. Já nos anos 70, a Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP) desviou vários aviões e fez vários reféns, sendo os passageiros de nacionalidades americana ou israelita os últimos a serem libertados. Enquanto isso, ia libertando os outros, em troca de alguns dos seus operacionais. Uma das mais famosas trocas aconteceu com Leila Khaled, um dos principais rostos femininos da FPLP, que se encontrava detida.

A instabilidade no Médio Oriente é crónica e ninguém sabe quanto tempo é que este conflito vai durar. Os milhares de famílias que perderam os seus entes queridos, de ambos os lados, vai fazer com que a espiral do ódio e desejo de vingança se prolonguem e se reforcem pelas próximas gerações?
Sim, acredito que o conflito vai prolongar-se durante muito tempo e o ódio que tem sido alimentado vai passar de geração em geração. Há situações muito traumáticas que envolvem crianças e jovens, e até mesmo adultos que estiveram ou ainda estão sequestrados, e que tão cedo não serão esquecidas. Esta memória não morrerá. Tanto de um lado, como do outro.

Já falámos do papel dos Estados Unidos neste conflito, mas a Europa também tem uma palavra relevante a dizer. Como explica que o conflito na Ucrânia tenha unido os europeus e o eclodir do conflito no Médio Oriente esteja a dividi-los?
Na guerra da Ucrânia todos os parceiros europeus olhavam para a Rússia da mesma forma: o grande inimigo. Por esse motivo, foi óbvia a união em torno da causa ucraniana. Por seu turno, o conflito do Médio Oriente está num patamar francamente mais politizado. E do ponto de vista da ideologia política isso é mais visível. A direita manifesta-se do lado de Israel, enquanto a esquerda posiciona-se do lado da Palestina.

O terrorismo de matriz islâmica é uma das suas áreas de estudo e especialização. Os últimos ataques em massa na Europa foram em Paris (2015), Bruxelas (2016) e Barcelona (2017). Encontra alguma explicação para fenómenos desta natureza se terem tornado mais raros nas grandes cidades do «velho» continente?
A luta internacional contra o terrorismo tem surtido algum efeito. Para além disso, os Estados estão mais alerta, no sentido de prevenir e antecipar estes ataques em massa. Por outro lado, as organizações terroristas também já perceberam que isso está a acontecer e têm de procurar outras alternativas para continuar a levar a cabo os seus ataques.

Os «lobos solitários», ou seja, os indivíduos radicalizados, são os novos protagonistas?
Exato. A academia começou por chamá-los de «lobos solitários», um pouco à semelhança do lobo que se separa da alcateia, seguindo o seu caminho. Mais recentemente, está a abandonar-se a associação ao mundo animal e a expressão usada é «atores solitários». Mas o princípio é, na essência, o mesmo: pessoas que não estão relacionadas com qualquer organização, mas que se identifiquem ideologicamente com os seus princípios. Na fase da doutrinação é transmitida a estes «lobos» ou «atores» a formação necessária, mas o momento da investida é definido pelo próprio atacante que pensa por si. Ultimamente, as organizações terroristas têm recorrido a este tipo de estratégias para perpetrar os seus ataques. Ainda na semana passada, em pleno centro de Paris, um ataque de um indivíduo causou uma vítima. E o motivo avançado por este terrorista foi o de sempre: o papel e a intervenção do ocidente no Médio Oriente.

Como se processa a radicalização dos tais «lobos» ou «atores solitários»?
Faz-se através da “dark” e da “deep web”. Em tempo real, é possível os «instrutores», através do computador ou do telemóvel, estarem a milhares de quilómetros a transmitirem orientações operacionais e estratégicas aos potenciais atacantes. É uma forma moderna de doutrinação e torna mais difícil, por parte dos serviços de inteligência, apanharem o rasto. Aqui impõe-se um reforço de recursos humanos para uma melhor monitorização de todos os meios onde esta informação é veiculada.

O êxito na luta contra o terrorismo deve-se à mais estreita cooperação entre as polícias e ao trabalho dos serviços de inteligência?
Em grande medida, sim. Desde o 11 de setembro o mundo inteiro ficou mais desperto para estes atos. O que não impediu que depois, nomeadamente a Europa, tenha sofrido grandes ataques em massa. Mas nos últimos anos os progressos foram mais evidentes, o que me leva a crer que, nos tempos que correm, será mais difícil preparar um atentado com uma grande envergadura.

A deriva securitária que caracteriza as sociedades modernas tenderá a acentuar-se com fenómenos políticos e sociais cada vez mais extremados?
Nas sociedades modernas os Estados, confrontados, com regularidade, com algum tipo de ataques terroristas ou manifestações mais violentas tendem a reagir através de uma lógica de securitização, impondo limitações ao nível da segurança. Mas, sinceramente, não estou preocupada. Num mundo tão globalizado, em que nos expomos tanto, nomeadamente nas redes sociais, acabamos por ser monitorizados e vigiados em permanência, sempre que usamos o Multibanco ou quando passamos a Via Verde. Não me parece que os Estados estejam a coartar as liberdades dos cidadãos em troca de maior segurança. Na minha opinião, uma cidade que invista numa estratégia de videovigilância para prevenir situações de criminalidade não está a limitar as minhas liberdades. Defendo até que deve existir um reforço do investimento em segurança, respeitando sempre os direitos, as liberdades e as garantias dos cidadãos.

Diz-se que o ciberterrorismo é uma forma de fazer a guerra por outros meios. Com a sofisticação tecnológica e a própria emergência da Inteligência Artificial, as guerras vão-se fazer cada vez menos com botas no terreno e mais através de ciberataques?
Esse pode ser o futuro da guerra, sem dúvida. As guerras do futuro serão cada vez mais tecnológicas. Graças ao desenvolvimento tecnológico, já é possível desencadear ataques cirúrgicos, com a vantagem, especialmente para os perpetradores, de diminuir o número de baixas. Deixa de ser preciso enviar militares para o terreno e é possível aniquilar os alvos, quer sejam infraestruturas ou até pessoas, com grande eficácia. Com a Inteligência Artificial já é possível produzir um “drone” (pequenos em dimensão e sofisticados em precisão), que faz o reconhecimento facial do terrorista que é preciso abater. Com a particularidade de o operador do “drone” que vai primir o botão para a execução até poder estar a milhares de quilómetros do alvo. E é preciso não esquecer que o poder e o alcance dos ciberataques que, se visarem diretamente o âmago dos sistemas informáticos, podem deixar um país inteiro sem comunicações ou completamente às escuras.

 

Cara da Notícia

Especialista em assuntos do Médio Oriente

Teresa de Almeida e Silva é professora catedrática do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa (ISCSP-ULisboa), sendo coordenadora da unidade curricular de Relações Internacionais. É licenciada, mestre e doutorada em Relações Internacionais e pós-graduada em Estudos Islâmicos pela mesma escola, fundada por Adriano Moreira. É vice-presidente do Instituto do Oriente, entidade do ISCSP que se dedica à investigação, formação avançada e divulgação científica na área dos Estudos Asiáticos. A segurança nacional, o terrorismo de matriz islâmica e o contraterrorismo são as suas principais áreas de investigação, sendo o Médio Oriente e a Ásia Central as regiões do globo que concitam a sua especial atenção. Foi distinguida, pelo ISCSP, em 2018, com o prémio de mérito científico em investigação avançada.

Nuno Dias da Silva
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