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Rute Agulhas, psicóloga e coordenadora do Grupo VITA ‘A violência sexual é um problema de saúde pública’

20-11-2023

Para prevenir abusos sexuais é preciso trabalhar com as crianças, e no contexto social e familiar onde se inserem, como também intervir junto dos abusadores. A tese é defendida pela psicóloga Rute Agulhas que no próximo mês apresentará o primeiro relatório do Grupo VITA, criado por iniciativa da Conferência Episcopal Portuguesa, divulgando, ao mesmo tempo, o manual de prevenção da violência sexual no contexto da Igreja Católica.
Em entrevista, refere que a violência sexual é um problema de saúde pública.

O Censos 2021 registou um aumento significativo da população divorciada. Este livro, «Sou madrasta ou padrasto…e agora?», em que é coautora, na companhia de uma colega de especialidade e de um advogado, pretende ser uma abordagem inovadora sobre a realidade das famílias recompostas. Foi a sua experiência clínica diária que a levou a avançar para este projeto em forma de livro?
Também. A literatura existente é muito focada nos pais e nas crianças e procurou-se, de alguma forma, colmatar esta lacuna. A ideia de escrever este livro surgiu na sequência, de cada vez mais me deparar, tanto na prática clínica, como na prática forense, com famílias recompostas – com processos de separação e divórcio. Muitas vezes com conflito parental, em que o pedido de ajuda passa muito por perceber o bem-estar da criança perante esta nova realidade familiar, e em que alguns casos chegam mesmo a tribunal. A ideia com que se fica é que em todo este processo as madrastas e os padrastos são pessoas quase invisíveis em todo o processo, terapêutico ou forense. Ou seja, o sistema profissional acaba por reforçar aquilo que eles já sentem: serem “outsiders” ou de caírem de para-quedas nas famílias. Mas o que se constata é que, em vários casos, são estas madrastas e padrastos que acabam por conciliar conflitos nas famílias e «pôr água na fervura», muito fruto do seu olhar mais externo e menos enviesado.

As madrastas não são segundas mães e os padrastos não são segundos pais, mas o seu papel encontra-se reconhecido na legislação portuguesa. As pessoas têm a noção disso?
Há um desconhecimento dos direitos e deveres de madrastas e padrastos e, por isso, convidei um advogado a participar neste livro para esclarecer os deveres legais destes elementos. Em resumo, não são substitutos dos pais, mas são figuras reconhecidas e especialmente importantes para as crianças. Na verdade, devem ser tratadas como um complemento e como mais uma figura de referência afetiva na criança. O grande desafio que se coloca às famílias recompostas é saber clarificar os papéis, e os limites, de cada um dos elementos: pais biológicos, madrastas e padrastos. Mas não é imediato e instantâneo. Até porque a complexidade destas famílias recompostas deve-se ao facto de os seus elementos já terem histórias, «bagagem» e vivências sobre os seus ombros. E esse histórico não se anula. Para além disso, há outro aspeto importante, que é a gestão de expetativas. Entrar numa família recomposta não é algo completamente cor-de-rosa, nem, antecipadamente, tem tudo para correr mal. É preciso equilíbrio e, acima de tudo, tempo.

O imaginário coletivo está repleto de estigmas e conotações negativas em relação a estes termos. Basta lembrar-nos do conto de fadas «Cinderela» e de aforismos como «a sorte foi madrasta». Pretendeu-se desmistificar estas personagens secundárias e dar-lhes um papel de atores principais?
Sim. O imaginário infantil dos adultos de hoje esteve sempre povoado pela «Cinderela» e a sua madrasta malvada, por exemplo. Bem como os padrastos maltratantes e os enteados sempre muito infelizes e preteridos, relativamente aos filhos biológicos. E perante isto, é difícil desconstruir este imaginário.

Defende a adoção de técnicas e estratégias na gestão de papéis, emoções e conflitos nas famílias recompostas, de forma a fomentar relações saudáveis. E fala de rituais familiares. Pode dar algum exemplo concreto?
Não há um exemplo de um ritual entendido como bom ou mau. De uma forma genérica, os rituais ajudam os elementos das famílias a sentirem alguma coesão. Veja o que se passa com os hábitos de celebração do Natal, da Páscoa ou dos aniversários, etc. Há sempre uma maneira nossa de fazer tudo. Ou seja, é difícil existir consenso ou mesmo um entendimento mínimo. Entramos em rota de colisão e o Natal é disso exemplo elucidativo. Os conflitos surgem com o que cada elemento ou cada família quer fazer. Nas famílias recompostas há formas diferentes de celebrar porque há rituais prévios. E o que proponho é a criação de novos rituais, adaptados a esta nova família, para construir uma identidade familiar. Mas isto não surge por geração espontânea. Obtém-se com investimento, tempo, convívio e alguma dose de paciência. As famílias recompostas devem pensar nisto de forma ativa. Só desse modo poderá emergir este «nós», que remeta para uma dimensão de coesão e identidade familiar.

As famílias nucleares e mais recentemente as famílias recompostas são duas realidades que coexistem nas sociedades modernas, mas com as segundas a ganharem terreno. Admite que instituição família está em crise ou, por outro lado, em processo de transformação acelerada?
Diria que está em processo de transformação acelerada, mas mesmo a crise não tem de ser negativa, até porque as crises também podem ser oportunidades de mudança, se forem bem aproveitadas. De facto, a família já não é o que era, mas temos de abrir espaço para a diversidade de situações que temos e procurar harmonizá-las da melhor maneira, a contento de todos. Isso explica o termo recomposto e não reconstituído, porque estamos a falar de uma composição diferente, fruto das alterações que os núcleos familiares vão sofrendo, nomeadamente fruto de separações ou divórcios.

Li uma entrevista sua em que dizia que «uma família deve ser como um papagaio de papel», ou seja, que voa, sem se perder e sem cair ao chão. É esta a sua definição de um agregado familiar?
Essa metáfora do papagaio de papel tem a ver com a perspetiva de parentalidade e com a forma como se educa uma criança. Na perspetiva do equilíbrio entre a liberdade, a autonomia e o permitir explorar o mundo, sem perder as raízes, um vínculo, uma base segura. Se agarrarmos demasiado um papagaio de papel ele não voa. E podemos comparar com as famílias tão fechadas sobre si e centrípetas, que impedem a socialização das crianças. O oposto é quando damos muita corda ao papagaio, ele sobe demasiado e podemos perdê-lo. Em resumo, no equilíbrio é que está o segredo.

A sobreexposição das crianças aos ecrãs, nomeadamente aos telemóveis, é um tema muito em voga. As novas tecnologias estão a contribuir para acelerar a fragmentação em curso nas famílias?
Muitas famílias não estão a conseguir extrair as coisas boas que as novas tecnologias dispõem. Mas as novas tecnologias não podem ser diabolizadas. Têm vantagens: permitem comunicar, socializar, conviver, aprender, entreter, etc. Mas o seu uso excessivo, abusivo ou até patológico é de todo desaconselhado, deixando de ser saudável. Há pessoas que se encontram na mesma casa ou na mesma divisão, mas estão cada uma no seu mundo. E a pandemia potenciou muito isto, criando um contexto favorável a um uso mais desmesurado da tecnologia.

Os telemóveis devem ser banidos das salas de aula?
Algumas escolas adotaram medidas drásticas de proibição, visto que as crianças não se conseguem regular sozinhas e até os próprios pais admitem que perderam o controlo da situação, delegando a responsabilidade no filtro parental, demitindo-se do papel de supervisão. Em contexto escolar, os telemóveis deviam, idealmente, ficar desligados ou sem som, dentro da mochila, mas os miúdos não conseguem ter essa capacidade de controlo, o que acaba por perturbar a aula. Mas se formos a um recreio de uma qualquer escola, a esmagadora maioria dos alunos já não convive. Não correm, não brincam, não saltam. Até num restaurante se vê que as tecnologias são usadas como se fossem uma chucha para distrair e entreter uma criança mais pequena.

A 20 de outubro passado, quando se assinalou o Dia Mundial do Combate ao bullying, as autoridades reportaram mais de três centenas de crimes desta natureza e também “ciberbullying”. Foram os casos que aumentaram desde a pandemia ou foi a sensibilização para a sua denuncia que os fez disparar?
A sensibilização para a denúncia explica em boa parte esses casos. É preciso não esquecer que a pandemia motivou o uso do acesso à tecnologia e, consequentemente, registou-se um incremento do “ciberbullying”. Mas eu acredito que os miúdos estão cada vez mais informados sobre esta problemática e as próprias escolas têm dinamizado ações de sensibilização e formação o que permite que exista uma menor tolerância relativamente a estas temáticas. Mas há um longo caminho a percorrer neste domínio. Até porque alguns miúdos admitem que são incentivados pelos próprios pais, em caso de agressão, a responderem na mesma moeda.

Um estudo recente concluiu que há cada vez mais jovens com comportamentos autolesivos para acalmar crises de ansiedade, tristeza e frustração Os do 8.º ano são os que mais se automutilam. O acompanhamento da saúde mental dos agentes escolares – em particular dos estudantes – está ao nível que seria desejável?
Não. Muitos dos professores estão em “burnout” e alguns estão a braços com processos individuais complexos, o que lhes retira a disponibilidade emocional para estarem mais atentos para estes problemas dos alunos. O rácio de técnicos da área da psicologia nas escolas para cada aluno até é relativamente adequado, mas as questões tratadas são quase exclusivamente de âmbito escolar. Como o Serviço Nacional de Saúde não dá resposta, os psicólogos das escolas acabam por ficar assoberbados com outros pedidos de ajuda, à margem do contexto educativo. É o caso da ansiedade, depressão, tentativa de suicídio, etc. Em consequência, falta tempo a estes profissionais para prepararem e lançarem iniciativas na área da prevenção e que podiam ser muito úteis e eficazes junto da comunidade escolar.

O que acontece de menos positivo na escola pode ser, de algum modo, reflexo de uma família em desagregação?
Num contexto familiar disfuncional – em que existem maus tratos, violência, consumo de droga, etc. – uma criança tem muito mais probabilidades de evidenciar um comportamento mais desajustado. É preciso estar atento aos sinais de alerta de que algo não está bem com a criança. Nesse sentido, as escolas terão de estar capacitadas para identificar situações de risco, sinalizando-as e dando-lhes o devido encaminhamento. Depois há muitas famílias que entendem que o papel da escola é o de educar as crianças, delegando excessivamente esta competência nos estabelecimentos de ensino. Estas competências devem ser complementares. E, por outro lado, também há famílias que têm muitas dificuldades em assumir o seu papel cuidador e educador, remetendo para a escola uma função que não é o seu, pelo menos, na totalidade. Os pais devem ser envolvidos na escola numa perspetiva mais positiva, fazendo-se sentir parte integrante da comunidade escolar, mais na perspetiva construtiva do termo e menos na perspetiva da vigilância.

Coordena a estrutura proposta pela Conferência Episcopal Portuguesa, o grupo VITA, no acompanhamento das vítimas de abusos sexuais da Igreja Católica. Como estão as correr as ações de sensibilização e capacitação desenvolvidas junto de diversas entidades?
Esse processo está a correr muito bem, com uma boa adesão das comissões diocesanas e de vários institutos religiosos, ao nível das ações de sensibilização e capacitação. Iniciaremos em janeiro, a formação com catequistas e professores de Educação Moral e Religiosa Católica. Enquanto isso, os pedidos não param de nos chegar de diversos quadrantes da Igreja. Há muito interesse em saber mais e em aderir, em particular, às ações no âmbito da prevenção, acautelando eventuais situações de risco.

Relativamente à denúncia dos casos de abusos, depois do “boom” verificado durante as Jornadas Mundiais da Juventude, o ritmo já estabilizou?
Houve dois picos, primeiro quando iniciámos funções, a 22 de maio, e depois no início de agosto, aquando da realização das Jornadas Mundiais da Juventude. De facto, agora os pedidos de ajuda já não surgem com a frequência do passado. O último balanço que tínhamos era de 62 pedidos de ajuda chegados, até ao momento. Estamos na fase de encaminhar os pedidos que nos chegaram, providenciando acompanhamento psicológico e psiquiátrico e nalguns casos apoio social. Entretanto, no próximo dia 12 de dezembro, em Lisboa, vamos apresentar o primeiro relatório do Grupo VITA e também divulgaremos o manual de prevenção da violência sexual no contexto da Igreja Católica.

Reitera que a prevenção de novas situações de abuso e a recuperação dos agressores são objetivos essenciais do vosso trabalho?
Não podemos prevenir situações futuras se não atuarmos com as pessoas que cometem estes crimes. Sabemos que a taxa de reincidência sem qualquer intervenção é elevada e reduz-se, até de forma significativa, quando existe uma intervenção especializada. Para prevenir abusos sexuais é preciso trabalhar com as crianças, e no contexto social e familiar onde se inserem, como também com os abusadores. Não chega afastar a pessoa da sua função, como não chega a pessoa ir para a prisão. Ou seja, uma eventual medida de afastamento deve ser complementada com uma medida de intervenção. A violência sexual é um problema de saúde pública global pela dimensão, prevalência e impacto do fenómeno. É preciso não esquecer que a prevalência conhecida é a ponta do icebergue e que estamos a receber pedidos de ajuda de pessoas que foram abusadas há 20, 30, 40 anos ou mais. É isto que faz com que se justifique apostar em políticas preventivas e programas de prevenção no âmbito dos abusos sexuais.

Para concluir, quero convidá-la a recuar até à tarde do dia 2 de agosto quando esteve na Nunciatura no encontro que o Papa Francisco teve com 13 vítimas de abusos sexuais. Como relembra esse momento?
Faço uma declaração de interesses prévia: não sou católica, mas viver na primeira pessoa aquele momento foi único e inesquecível. Este perdão vindo do Papa teve um significado e um impacto muito grande. Ao longo de hora e meia, o Papa teve sempre uma postura de escuta ativa, olhando e acenando a todos os que deram o seu testemunho. A sua empatia fez com que muitas das vítimas se sentissem renovadas e renascidas. Foi um momento de gratidão.

 

Cara da notícia

Coordenadora do Grupo VITA

Rute Agulhas é psicóloga especialista em psicologia clínica e da saúde, psicoterapia e psicologia da justiça. Terapeuta familiar e Terapeuta EMDR. Perita forense na delegação sul do INMLCF, IP. Professora assistente convidada no ISCTE-IUL. Formadora sénior no ISPA-IU. Coordenadora do Grupo VITA – Grupo de acompanhamento das situações de violência sexual de crianças e adultos vulneráveis no contexto da Igreja Católica em Portugal. Escreve regularmente artigos da sua área de especialidade no «Diário de Notícias» e no «Público». É uma das autoras do livro ««Sou madrasta ou padrasto…e agora?», editado pela Oficina do Livro.

Nuno Dias da Silva
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