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José Roquette, médico cirurgião No bloco o cirurgião é o capitão do navio

21-03-2022

A aprendizagem e o crescimento dos médicos mais jovens depende, em grande medida, do impulso que as unidades hospitalares dão à formação. José Roquette, diretor clínico do Hospital da Luz durante 13 anos, defende que o toque humano do médico deve prevalecer sobre a máquina, justificando que esta “ajuda, mas não fornece diagnósticos”.

Desde pequeno que soube que queria ser médico. Considera a sua longa carreira como uma espécie de missão para a qual sempre sentiu vocação ou um sacerdócio?
Uma vocação e uma missão é inegável, mas sacerdócio é algo que tem um nível de envolvimento pessoal e de relação com o mundo diferente de um médico. Apesar de existirem alguns pontos de contacto. Por exemplo, a permanente dependência do acesso, contacto e disponibilidade que temos de ter para os nossos doentes e respetivas famílias.

No livro de memórias que acaba de editar enfatiza o prazer que lhe deu ajudar a salvar vidas pondo «as mãos na massa», ou seja, fazendo intervenções cirúrgicas. Permita-me insistir na analogia religiosa: o bloco operatório é um local sagrado para um médico cirurgião?
Obviamente que sim. A qualificação e a prática do profissional precisa de corresponder na plenitude ao grau de complexidade da intervenção cirúrgica a que está a submeter os seus pacientes. Ainda para mais no caso da minha especialidade, em que as cirurgias cardíacas são, invariavelmente, operações de risco. Os médicos têm de ter o máximo respeito pelas pessoas que confiam em nós o seu tratamento. Numa fase mais adiantada da carreira, em que acumulava funções com responsabilidades que não eram exclusivamente clínicas, o bloco operatório era um momento de descanso, em que me abstraia de um conjunto de problemas que, durante algumas horas, ficavam a repousar em cima da minha secretária. No fundo, estava a fazer o que sempre me deu mais prazer fazer na minha profissão.

Durante uma intervenção cirúrgica os egos e as opiniões têm de ficar à porta?
No bloco operatório o cirurgião é o capitão do navio. Ali não há egos e a democracia fica à porta. É ele que concentra a total responsabilidade pelo procedimento cirúrgico, independentemente de erros que possam ter sido cometidos por elementos que integram a sua equipa.

Afirma que «apesar do treino, um cirurgião está sempre a aprender». Qual foi a importância da tese de doutoramento que fez para a sua vida clínica diária?
A tese de doutoramento dá ferramentas e confere um espírito analítico a quem a desenvolve, mas, ao mesmo tempo, obriga a uma disciplina mental e de trabalho muito elevada. E a disciplina passa por reservar cerca de duas horas por dia a este trabalho. Se num dia não for possível fazer essas duas horas, terá de se compensar no dia seguinte. E este esforço tem, necessariamente, de envolver a família que é diretamente sacrificada pelo menos tempo que a pessoa passa a ter disponível, mas, em simultâneo, compreender a importância deste projeto para a melhoria e evolução da prática clínica diária.

O professor Machado Macedo, a quem chama «o meu mentor», é a referência permanente da sua vida profissional. Que valores perenes devem pautar a relação entre mestre e discípulo?
Os valores que devem pautar essa relação são o respeito e a intenção de proporcionar ao discípulo todos os conhecimentos, sempre no pressuposto de termos quase a certeza de que ele vai ser melhor do que nós. Isto é um aspeto crucial. Já no relacionamento entre discípulo e mestre deve emergir o respeito pela personalidade, compreender que o facto de o termos escolhido para nosso mentor faz com que a relação de dependência seja muito marcada. No fundo, tentar emulá-lo. Fazer aquilo que ele faz, do mesmo modo, ou se possível melhor. E não é fácil. Especialmente se falarmos no caso concreto do professor Machado Macedo. Um homem que construiu a sua carreira numa especialidade que praticamente não existia em Portugal e que ele implementou e dinamizou, tendo sido de fundamental importância para o desenvolvimento e crescimento da cirurgia cardíaca e das especialidades afins, como é o caso da cardiologia, da cardiologia pediátrica, a pneumologia, a fisiologia, etc. Por ser uma pessoa quase inatingível, nós, os seus discípulos, tínhamos de fazer, diariamente e permanentemente, um esforço sistemático para o acompanhar de modo, pelo menos, a tentar chegar algum dia aos seus calcanhares.

Os médicos são percecionados como seres infalíveis, mas também apresentam um lado humanista pela proximidade que têm de ter no lidar com os casos concretos dos doentes. Estas duas vertentes são conciliáveis?
Os médicos têm de ser, ao mesmo tempo, humildes e responsáveis. E a perspetiva de tentar ser infalível – apesar de nem sempre ser possível – na prática diária tem de ser conciliável com o lado humanista do profissional. Contudo, deixe-me sublinhar o seguinte: qualquer médico que pense que é infalível está a laborar num erro. A evolução da Medicina é diária e permanente, e pode acontecer que num dia em que aplicamos determinada prática ou técnica para o caso concreto de um paciente é publicado um artigo avançando com uma alternativa a essa prática, porventura com mais vantagens para o doente.

Os casos oncológicos já matam mais do que as patologias coronárias. O que é que determinou esta nova tendência?
Vários fatores, um deles é o envelhecimento da população. A probabilidade de as pessoas terem problemas oncológicos aumentou muito pelo facto de vivermos mais anos.

A oncologia, por ser um dos grandes desafios com que as unidades hospitalares se confrontam, obriga a uma visão de conjunto dos pacientes e a colaboração entre especialidades médicas?
É indispensável uma terapêutica integrada e uma abordagem multidisciplinar para obter a melhor solução e o melhor tratamento para responder ao caso concreto de cancro em cada paciente.

Defende que uma vida regrada não é sinal de imunidade a doenças. O problema pode estar na genética?
No caso da doença cardíaca, que é a minha especialidade, há fatores genéticos que têm, necessariamente, algum impacto. Falo em concreto de um amigo meu que operei e que fazia uma alimentação e um estilo de vida regrado e até era desportista e mesmo assim foi acometido de uma patologia coronária. Se ele tivesse tido uma vida sedentária e menos disciplinada, com uma elevada probabilidade a patologia ter-se-ia manifestado muito mais cedo. Dito de outra maneira: a doença está lá, há é fatores que podem contribuir para o seu aceleramento e agravamento.

O que se passa com as doenças cardíacas também se passa com as oncológicas?
A oncologia não é a minha especialidade. Mas posso adiantar que se uma pessoa tiver tido um familiar com patologia oncológica pulmonar e que seja fumador, tem mais probabilidades de contrair uma doença desta natureza mais precocemente, em comparação com uma pessoa que não seja fumadora.

Esteve na fundação do Hospital da Luz, em Lisboa, em dezembro de 2006. Um projeto inovador e que revolucionou a Saúde em Portugal. Este foi o projeto da sua vida?
Ao longo da vida vamos abraçando os diversos projetos que nos vão aparecendo. E os projetos vão evoluindo. Primeiro o nosso projeto passa por acabar o curso com boas notas, depois o projeto passa por tirar a especialidade médica e o passo seguinte é aprender, fazer bem e chegar ao topo da nossa especialidade. E assim sucessivamente. Depois de ter alcançado o topo da carreira nos hospitais públicos e de o serviço onde era diretor ter sido considerado o mais ativo do país, surgiu a oportunidade que logo percecionei como sendo uma mudança naquilo que era a hospitalização privada em Portugal. Percebi que as pessoas que me convidaram, com destaque para a engenheira Isabel Vaz, tinham ambição, estratégia e capacidade de gestão. A partir desse momento, o Hospital da Luz passou a ser mais um projeto da minha vida.

Que caraterísticas fizeram deste um projeto disruptivo e inovador?
Para começar, não existia nenhuma unidade privada em que os médicos trabalhassem a tempo inteiro. E o Hospital da Luz mudou esse paradigma. Apresentou-se como um projeto «fora da caixa». Queríamos que fosse um verdadeiro hospital e não o que era vulgarmente designado como casa de saúde ou clínica. E depois percebemos que tínhamos de fazer formação e investigação para progredir, bem como trabalhar a multidisciplinaridade e apostar na tecnologia, de forma a aceder de forma célere aos atos clínicos e ao histórico dos doentes.

A aposta na formação e na investigação foram decisivas para este ser um empreendimento bem sucedido?
A formação e a investigação são cruciais para o progresso da Medicina. Vi muitas unidades hospitalares privadas crescerem e depois estiolarem, porque não promoveram a formação, impedindo os médicos mais novos de crescerem e de desenvolverem a sua prática.

Fruto da tecnologia, a relação entre médico e doente tem vindo a perder-se. Como equilibrar o toque humano do profissional e o crescente papel desempenhado pelas máquinas?
A máquina, como meio complementar de diagnóstico, ajuda o médico, mas não fornece o diagnostico. É crucial que os profissionais continuem a pensar e a raciocinarem em termos de exame clínico objetivo e do histórico do doente. E não esquecer que, muitas vezes, é apenas do diálogo entre o doente e o medico que se consegue descobrir qual é a doença que está subjacente.

 

CARA DA NOTÍCIA

«Um senador da Medicina»

José Roquette nasceu em 1946, em Lisboa. Neto de José de Alvalade e trineto do Visconde de Alvalade, fundadores do Sporting Clube de Portugal, é atualmente presidente do conselho clínico do Grupo Luz Saúde. Foi diretor clínico do Hospital da Luz Lisboa desde a sua fundação, em 2006, até 2019 e acumula uma vasta experiência no setor privado e público da Saúde, como médico, dirigente e responsável clínico. Foi diretor do serviço de cirurgia cardiotorácica no Hospital de Santa Marta, em Lisboa. É membro fundador da European Association of Cardiothoracic Surgery e ocupou várias posições de liderança (incluindo a presidência), tanto na Sociedade Portuguesa de Cirurgia Cardiotorácica e Vascular, como na Sociedade Médica dos Hospitais Civis de Lisboa. Na sociedade civil José Roquette foi eleito presidente da Assembleia Municipal de Fronteira, em 1994. Foi também condecorado, em dezembro de 2015, com a Ordem do Infante D. Henrique, pelo então Presidente da República, Cavaco Silva. «De coração nas mãos» é o livro de memórias que lançou, em fevereiro deste ano, com a chancela da Oficina do Livro. Na apresentação, que contou com a presença do atual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e dos ex-presidentes Cavaco Silva e Ramalho Eanes, Luís Marques Mendes definiu o autor como «um senador da Medicina» que pautou a sua carreira pela «humildade e a preocupação ética.»

Nuno Dias da Silva
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