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Diretor Fundador: João Ruivo Diretor: João Carrega Ano: XXVII

Opinião Livros & Leituras

16-01-2023

Um Crime de Categoria (D. Quixote),de John Le Carré, romance publicado antes de “O espião que saiu do frio”, livro que o afirmou como um dos grandes do género, é um policial à boa maneira inglesa, mas que conta com George Smiley como detective nas horas vagas. Num desses colégios centenários onde se preparam as classes regentes do reino, acontece um crime insólito pelas características e circunstâncias do meio, académico e fechado, o que permite ao autor ser sardónico quanto baste, perfilando personagens que bem conhece. O resultado é um livro em que a sátira se manifesta, num retrato desses ambientes enfatuados e cheios de pompa vazia e invejas mortais.

A Mulher de Marraquexe (ASA), de Charles Cumming, é um romance de espionagem, da mesma linhagem de Le Carré e de outros escritores britânicos. O protagonista é um jovem escritor de livros de espiões, filho de um antigo agente inglês, caído em desgraça por causa da traição de Philby, durante a guerra fria. Envolvido num enredo muito actual, com a ameaça russa em acção subversiva, o nosso homem é encarregue de contactar uma agente perdida e tudo se enovela até um desfecho improvável, num livro que é um novo fôlego para o género.

O Crisântemo e a Espada (Guerra & Paz), de Ruth Benedict é um estudo clássico sobre o carácter nacional japonês, que lhe foi encomendado enquanto antropóloga, para assistir as forças americanas durante a Segunda Guerra Mundial no seu embate com um povo tão desconhecido e com uma história tão própria. O resultado é uma imersão não só na história do Japão, mas um verdadeiro retrato civilizacional de uma cultura radicalmente diferente da ocidental e mesmo das culturas vizinhas como a chinesa e coreana. Os pressupostos são intrinsecamente japoneses, baseando-se numa organização social muito particular, com códigos de conduta e modos de encarar a vida e a morte muito específicos, desde a educação das crianças, as noções de hierarquia, sentimentos, honra, estética, o culto do imperador, ou como a religião, xintoísmo e budismo, é vivida.

Evangelhos Apócrifos (Quetzal), de Frederico Lourenço, que traduz e comenta o conjunto de textos que não constam da historiografia canónica do cristianismo, e que foram arredados pelas vicissitudes humanas para o sótão poeirento do esquecimento. Incluem-se neste capítulo os evangelhos atribuídos a Tomé, Tiago, Pedro entre outros, dos quais se destaca o de Maria Madalena, e outros textos gnósticos. A relevância desta edição em português vai muito para além do seu carácter religioso em sentido lato, mas também da importância de dispor deste acervo que alarga o conhecimento da época e dos seus intervenientes, das variações, disputas e configurações que o tempo moldou.

Três Anéis (Elsinore), de Daniel Mendelsohn, autor de “Uma Odisseia” (na mesma editora) é uma esplêndida digressão pela história pessoal e pela literatura, seguindo a vida e obra de Erich Auerbach, judeu filólogo e autor de “Memesis”, uma obra fundamental sobre a literatura ocidental; François Fénelon”, que escreveu “As Aventuras de Telémaco”; e os livros do alemão W.G. Sebald. Os anéis do título remetem para o modo como o livro é construído e que ilustram a teoria de composição de Homero, que intercala digressões em torno de um centro, ou como uma rosácea é desenhada. Mendelsohn ilustra como obras com “Em Busca do Tempo Perdido”, de Proust, por exemplo, se inscrevem nesta tradição de contar histórias sobre histórias. Um livro soberbo.

A Mais Secreta Memória dos Homens (Quetzal), de Mahamed Mbougar Sarr, escritor senegalês de expressão francesa, recebeu o Prémio Goncourt em 2021. É um livro para amantes da literatura, do seu mistério e logro, em todas as acepções da palavra, onde o narrador procura desvendar a vida de um jovem escritor, apelidado de “Rimbaud negro”, que apenas publicou um livro antes de desparecer. O narrador embrenha-se na estranha história do seu compatriota, segue as pistas disponíveis para tentar deslindar o caso, e o resultado é uma viagem ao fim da noite, com paragens de Paris a Buenos Aires e Dakar, em páginas que são um hino e uma homenagem às letras do mundo, tudo servido por uma narrativa digna de nota.

Os Loureiros Estão Cortados (E- Primatur), de Édouard Dujardin, publicado em 1888, deve a sua glória póstuma a James Joyce: “Nada inventei. O monólogo interior é uma criação notável de Dujardin”. O escritor francês desenvolveu esta técnica literária ao passar a escrito o pensamento associativo da personagem do livro, um jovem estudante enfatuado pelo que pensa ser o amor por uma actriz coquete que apenas pretende extorquir-lhe uma boa maquia, deixando o pobre a suspirar. Numa tarde noite o infeliz acaba por perceber, depois de deambular por Paris nocturna, um jantar e um passeio ao luar, tudo servido pelas deambulações do seu pensamento atormentado. Uma pequena jóia.

A Confissão de um Filho do Século (Cavalo de Ferro), de Alfred de Musset, publicado de 1836 é uma obra-prima do Romantismo, agora traduzida pela primeira vez entre nós, onde se narram os infortúnios amorosos de um jovem de vinte e poucos anos, numa prosa sumptuosa. Inspirado nos amores que o autor teve com George Sand, é o retrato de uma época que languesce nas ruínas do império napoleónico, deixando as mentes entregues ao que se designou com “a doença do século”. “Tudo o que era já não é; tudo o que será ainda não o é”.

Roteiro Afetivo de Palavras Perdidas (Tinta-da-china), de António Mega Ferreira é uma deliciosa digressão por palavras e recordações de outros tempos, de uma Lisboa desaparecida, e de um país ainda conformado pela estreiteza salazarista, onde a prosa do autor se revela em tantos verbetes como “olvido”, “sortido fino”, vitualhas”, “chita”, “mocidade”, “pileca”, a par de memórias de acontecimentos, livros, filmes, ópera, num “cacharolete” de estampas que o tempo cristalizou e que são revividas sem nostalgia nem “sumiço”. Um livro encantador.

O Monte Análogo (Documenta), de René Daumal, à semelhança da sinfonia de Schubert, é uma obra incompleta, ou aberta aos horizontes sem fim. O autor animou a revista “Le Grand Jeu”, contemporânea do surrealismo bretoniano, interessou-se pelo alpinismo e pelo método Gurdjieff e pela estética védica. Em suma, foi um homem em busca do Absoluto, e este livro é o testemunho enigmático dessa ascensão do que está para lá do cume, ou de um outro modo de ser humano, abolindo a distinção entre o mundo físico e o mundo simbólico, pois é no intervalo que se avista a vastidão do infinito.

Medos – Antologia de Contos Insólitos Russos (Libro B), com  organização de Larissa Shotropa e a colaboração dos alunos do curso de tradução da Universidade Nova de Lisboa, eis um conjunto de 17 contos, abrangendo um século da literatura fantástica russa, de autores conhecidos e menos conhecidos, desde Tolstói a Tchekhov, a Odoeievsk, Andreiev, Briussov, Slogub e Gumiliov, o criador do Acmeísmo e incensado por Nabokov. Os contos são de cariz diverso, mas confluindo na grande corrente do fantástico, do maravilhoso e do insólito, dando um panorama vasto do género, desde o início do século XIX até bem dentro no século XX, antes de ser submetido ao banimento da época soviética. Uma janela para outros mundos e vivências fantásticas.

História da Rússia (D. Quixote), de Orlando Figes, é uma obra monumental, onde o historiador britânico demonstra como os mitos fundadores constituem um obstáculo e não uma vantagem. Mil anos de história russa comprovam na actualidade a veracidade desta conclusão, quando a Rússia está, uma vez mais, prisioneira de uma ficção construída que alimenta os mais desvairados desígnios. Como dizia George Orwell, “quem controla o passado controla o futuro: quem controla o presente controla o passado”. Ou como dizia a piada corrente: “A Rússia é um país com um futuro; é só o seu passado que é imprevisível”.

Rússia, Revolução e Guerra Civil 1917-1921 (Bertrand), de Antony Beevor, prestigiado historiador, condensa nestas páginas todo o horror da guerra civil que dilacerou aquele país. A luta entre “vermelhos” e “brancos”, com intervenção de algumas potências estrangeiras, foi de uma crueldade extrema, fazendo dez milhões de vítimas, e o resultado foi a implantação de um regime despótico que durou sete décadas. Uma obra fundamental para compreender a história do século XX russo.

José Guardado Moreira
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